Mais uma obra encantadora do artista transmídia, professor e pesquisador Edgar Franco, o Ciberpajé. Publicada em 2003 na versão impressa e relançada agora em 2023 pela editora Marca de Fantasia, duas décadas depois, na versão digital para nossa sorte, o que facilita o acesso aos amantes dos quadrinhos – baixe-a nesse link! As 11 HQs curtas presentes na obra nos apresentam uma linguagem visual marcada por uma estética em preto e branco que nos remete à uma atemporalidade em sua proposta imersiva que se desenvolve no decorrer de cada um dos 11 capítulos.
Destaco
a riqueza de detalhes desenvolvida no espaço e no tempo através dos
relatos ficcionais, permeados por uma deslumbrante fusão artística
entre o humano e suas ações e sensações mais viscerais. O animal
como extensão de nós mesmos por meio de personificações e
representações energéticas humanísticas, onde a natureza age como
protagonista em tudo que compõe a essência cósmica universal. São
narrativas ambientadas em cenários oníricos que harmonicamente
emergem de toda a obra. Aproveitando-se então dessa disposição
poética, enfatizado pela narrativa desse panorama imagético e
criativo provocado por essa realidade fantástica, vou desbravar
capítulo por capítulo desse projeto incrível a partir de minhas
percepções.
Capítulo
1 - COISAS DA CARNE: O capítulo que inaugura o álbum. Ele ressalta
o furor das paixões que sempre são consideradas prazeres efêmeros
e quando trazem à tona a essência do ser humano podem deflagar a
insegurança que esse sentimento provoca, acarretando assim uma
distorção da realidade. A tristeza aqui é ocasionada pela decepção
da perda do viço desse sentimento.
Capítulo
2 - AMÁLGAMA: Ciberpajé, neste capítulo, de forma profunda e
instigante, refere-se à vulnerabilidade dos prazeres humanos. Muitos
entregam seus corpos ao deleite da carne condicionados pelo ódio e
pela carência a todo custo, desprovidos de reais afetos, assim como
os animais copulam na natureza. Tudo em busca de uma satisfação
carnal intrínseca e momentânea.
Capítulo
3 - ENCONTROS: Neste capítulo, a amorosidade é um sonho a ser
conquistado, onde todos nós somos seres únicos e finitos e
almejamos espalhar o amor entre os povos, conscientes de que podemos
sim, desfrutar de um mesmo espaço cósmico e que precisamos evoluir
em prol de não destruirmos a humanidade. A paz universal. O afeto, a
amorosidade e a empatia como virtudes que imperam na transcendência
humana. O capítulo é brilhantemente finalizado com a citação de
nomes importantes nos âmbitos culturais, religiosos e filosóficos
como John Lennon, Gandhi, e Sócrates que foram personalidades de
extrema relevância em nossa sociedade e que não estão mais entre
nós, mas que deixaram seus legados eternamente na história da
humanidade.
Capítulo
4 - DUO DE UM: Tabus são aqui quebrados. Um olhar analítico para os
relacionamentos humanos, neste caso entre mãe e filho. O amor
materno que ultrapassa o dom de gerar, livre de dogmas e valores
cristãos, modifica o amor filial. Pecado carnal. Não podendo
alterar essa condição tampouco a sua realidade, a mãe se vê
enclausurada e condenada pela própria consciência perturbadora. Uma
dor permanente causada pelo remorso perpétuo.
Capítulo
5 - O INÍCIO: Neste capítulo, Edgar Franco descreve a busca
incessante pela sobrevivência. A composição visual impulsionada
pelos desenhos dá o tom dessa caçada visceral pelo alimento. E
assim, como numa miragem de deserto, o melhor sempre está por vir e
o indivíduo se depara com um oásis provocado por uma abundância da
natureza, onde tudo é possível, onde tudo é farto, onde a escassez
não predomina.
Capítulo
6 - ÉDEN: A sensibilidade poética desse capítulo encanta. A
procura incessante pelo paraíso, transmutado pelas barreiras do
tempo, chegando à uma definição de que o paraíso não se trata de
um lugar e sim, de um encontro de almas no qual se revela a imensidão
do ser. Lindo demais!
Capítulo
7 - SOBRE AS MÃES: Este capítulo me trouxe um olhar mais empático
quanto às nossas ações egocêntricas e desrespeitosas para com a
mãe natureza. A forma como destruímos essa maravilha cósmica. A
mãe Terra que tudo nos dá e não temos compaixão nenhuma para
retribuí-la. O egoísmo. Este com certeza é um dos lados mais
sombrios da natureza humana.
Capítulo
8 - A ESTAGNAÇÃO: O marasmo e a acomodação humana como agentes
para a criação do caos. A representatividade de Gaya, como a mola
propulsora para o florescer da humanidade partindo do princípio de
que onde há a morte da estagnação há o renascimento da vida.
Capítulo
9 - LIMITES: Este é o meu capítulo favorito. Eu que tanto externo
sobre essência, afeto e gratidão, me vi de alguma forma
representada neste capítulo, no qual me identifiquei bastante com o
contexto exposto. Senti-me pertencente à essa realeza literária,
algo tão latente e que aborda o universo de cada indivíduo. Um
reduto contido dentro da incompreensão do eu interior. O isolamento
particular de cada ser, onde ninguém conseguirá ao certo
compreendê-lo ou desvendá-lo. Nem mesmo seus ancestrais, pois o
sentimento de pequenez e inferioridade, afugenta e transcende seus
sonhos mais profundos.
Capítulo
10 - DENTRO: A comunicação aqui se entrelaça em toda força
imagética proporcionada por esse capítulo. É um despertar e um
revelar dos desejos mais ocultos, agora libertos, proporcionados pelo
desfrute das particularidades humanas. Sensacional!
Capítulo
11 – ANOMALIA: O último capítulo desse álbum revela o
desequilíbrio das polaridades humanas. O Yin e o Yang, a luz e a
escuridão como energia dual incompleta, resultante da não
completude desses seres, aqui incompreendida, com a esperança de que
um dia essa anomalia será corrigida e se tornarão uma só alma.
Finalizando
essa resenha, destaco que o Ciberpajé conseguiu por meio de
Transessência apresentar a essência da vida em todo seu processo
infinito de mutação, evolução e conexão com o universo e a sua
complexidade. Convido todos a desfrutarem da leitura dessa obra
fantástica.
*Raquel Alves de Freitas Nunes - É apaixonada por arte e cultura e ativista cultural em Goiânia
Ciberpajé e Raquel Nunes no lançamento do álbum Licanarquia na Mandrake Comic Shop em Goiânia