Phiippe Druillet, Moebius, Nicole Claveloux e Jodorowsky possuem em comum o experimentalismo como motor para a criação artístico-visual dos quadrinhos de ficção fantástica que são hoje tomados por referência canônica para artistas contemporâneos. Em Lone Sloane, por exemplo, o protagonista começa sua aventura intergaláctica sozinho no universo em completo desamparo. A solidão existencial que ele se encontra pouco a pouco vai dando espaço para uma quantidade de ambientes engenhosos que transcendem o nosso referencial de realidade.
Aquilo que a crítica literária traduz por novum, aquele dispositivo de locução no texto literário que serve para apresentar ao leitor a ruptura da realidade conhecida para uma outra realidade, seja esse dispositivo um artefato que permite os personagens viajar no tempo ou um super-vírus que lhe rende poderes ou super-infecções, no experimentalismo dos autores e da autora em destaque eu traduziria por artefato neobarroco de sobreposição de estímulos. Como em um poema de Gregório de Matos, como em um sermão de Padre Antonio Vieira, ou contemporizando para as páginas literárias de Fausto Fawcett ou Guilherme Kujawski, encontramos nos quadrinhos experimentais de ficção científica não um artefato ou dispositivo de locução, mas uma quantidade labiríntica de estímulos quadro a quadro que te levam a dobrar e desdobrar realidades e realidades dentro daquele novo ambiente especulativo. Neobarroco, pois, considero que a ficção especulativa que se propõe experimental ultrapassa as curvaturas regulares de cada gênero do fantasismo (horror, fantasia, ficção científica, o fantástico) e experimenta fontes complexas de vozes culturais disponíveis em nossa realidade, para testar o novo.
Esta modalidade do fantasismo que chamo de experimentalismo neobarroco é uma estética potente para as nossas subjetividades contemporâneas. E considero o último quadrinho lançado por Edgar Franco, o Ciberpajé, como um exemplo desse tipo de estética. Transessência, reeditado pela editora Marca da Fantasia, em 2023, é um ótimo exemplo de que o experimentalismo na criação artístico-visual dos quadrinhos de ficção especulativa não parou nas décadas de 1970 e 1980. E ainda, não é uma exclusividade da produção francesa da Metal Hurlant. Não! Nós, tupiniquins-tupinipunks, temos a sorte de respirarmos o mesmo ar que um artista chamado Edgar Franco, o Ciberpajé. Transessência é um espetáculo visual, resultado de 11 HQs curtas criadas na segunda metade da década de 1990 e início dos anos 2000. Anteriores à criação do universo ficcional transmídia Aurora Pós-humana, em cada história contamos com o embrião experimental que culminará em seu grande universo que conta com produções musicais, literárias, teatrais e audiovisuais.
O experimento artístico-visual que gostaria de destacar por aqui é justamente aquele que inaugura a edição: Coisas da carne. Em apenas duas páginas, encontramos camadas e camadas de informações sobrepostas. A começar pelo texto verbal que nos remete a um tipo de aforismo: ‘'A paixão às vezes é alimentada pelo monstro da insegurança e o fruto que no início era doce, apodrece tornando-se veneno’’. Quem é o autor desse enunciado? De onde vem essa voz que parece marcar um tipo de maldição ou condição essencial da humanidade?
A característica mais marcante de aforismos é que o seu uso em um texto carrega a potência semântica de um tipo de conhecimento ancestral emulado, a tradição de valores acumulados por gerações e gerações, ou quem sabe até um presságio de uma força metafísica. Contudo, neste caso específico, Ciberpajé ocupa um espaço limítrofe entre o lugar e o não lugar. Ao mesmo tempo em que somos tomados pela reflexão existencial de suas palavras, que nos levam a um desamparo cósmico, posto que somos seres movidos pelas paixões, nos levando a refletir que aquele aforismo enunciado nos cabe, também refletimos que estas são as regras apresentadas de um mundo que nos transcende e que não existe.
Fruto de uma realidade criada pelo autor, o diálogo do aforismo com as imagens sequenciais potencializam ainda mais o espaço limítrofe entre o real e o irreal que este discurso ocupa. Contamos com dois persongens que são movidos pelas paixões, mas o tipo de arte não racionaliza essas paixões em um plano sequência, mas em uma composição única, em um tipo de mosaico de imagens que representa o diálogo surrealista entre a realidade externa e as impressões da realidade interna de cada um.
Daí vem o experimentalismo neobarroco: em apenas uma página, Ciberpajé registra metonimicamente as fantasias, os desejos, as angústias, os prazeres e os medos desses personagens para, na segunda página, representar o fruto tomado pelo veneno da insegurança. Metonimicamente, uma vez que a criação artístico-visual de Ciberpajé te apresenta a parte para que você, na condição de leitor, estabeleça um processo de reelaboração do todo. O motor de sua criação não é a metáfora, não é a comparação ou a analogia espelhada entre o mundo daqui e o mundo dali. Não. O motor é a metonímia, no sentido de que o artista te apresenta parte de um mundo que você reelabora, ressignifica, problematiza regras e dialeticamente dialoga com a tua subjetividade.
Gostaria de destacar que a obra de Ciberpajé não pode ser ignorada por aquelas e aqueles que admiram e almejam praticar a produção criativa em todas as vertentes: seja na Literatura, nos Quadrinhos, nos games e no audiovisual. Em cada trabalho realizado pelo artista, desde a década de 1990 até os dias atuais, aprendemos sobre a necessidade de dar mais vazão para nosso potencial experimental no discurso artístico. E ainda, tomamos uma lição fundamental, em um país culturalmente predatório como o nosso: não devemos jamais nos prender às limitações criadas e fantasiadas por um mercado delirante. Deixemos nossa mente imaginativa trabalhar, nos esforcemos para criar com sinceridade aquilo que desejamos criar. Ciberpajé é um exemplo da liberdade anárquica que deve imperar em cada mente artística que busca, além de descolonizar-se, emancipar-se pelo menos um pouquinho desse capitalismo paranoico, predatório e delirante cheio de narrativas artísticas ingênuas.
*Ricardo Celestino é paulista, doutor em Língua Portuguesa, psicanalista em formação, professor, pesquisador e escritor do e destaque do gênero fantástico brasileiro, com muitos contos e dois romances publicados, Até que a brisa da manhã necrose teu sistema, vencedor do Prêmio Argos de Literatura Fantástica, e Banho de Sol.