Informações são as chaves para um entendimento cada vez mais aprofundado em todos os temas do conhecimento humano. Os livros são fontes que facilitam a transmissão de idéias, e colaboram nesta incessante troca de dados, além de manterem aceso o espírito instigador no leitor. Mas existem outras linguagens que desbravam conceitos, sugerem trilhas novas e facilitam o acesso de informes não visualizados prontamente, estabelecendo conexões que somente seriam percebidas após muito estudo. O livro “História em Quadrinhos e Arquitetura” (1), agora em sua terceira edição, do autor, pesquisador e pós-doutor, Edgar Franco (2) sintetiza e aborda uma destas linguagens: Edgar é arquiteto por formação, mas sempre enveredou pela autoria de histórias em quadrinhos de temática adulta, do gênero que se pode chamar de fantástico-filosófico, e é justamente esta sua experiência na área arquitetônica e quadrinhística que faz de seu livro um escopo de demonstração das conexões entre as construções urbanísticas e a própria linguagem e conteúdos dos quadrinhos, cujas especificidades de linguagem ilustram perfeitamente o potencial que têm como mediadores de informação.
Duas
páginas do livro de Edgar Franco que exploram a questão da arquitetura
e dos quadrinhos na obra “A Febre de Urbicanda”, de autoria de
Benoît Peeters e François Schuiten.
Traçando um panorama sucinto das histórias em quadrinhos (incluindo a utilização das filacteras e balões), chegando aos quadrinhos autorais, e adentrando nas abordagens arquitetônicas e seus movimentos até o modernismo, o livro busca elucidar pontos entre as artes-seqüenciais, a arquitetura e o cinema exemplificando-as com algumas obras, como Asterix, Príncipe Valente, Triton e Blade Runner, mencionando a dubiedade e semelhança profissional entre os “arquitetos quadrinhistas e quadrinhistas arquitetos”, como os espanhóis Daniel Torres e Miguelanxo Prado, ou o italiano Lorenzo Mattoti. Outros autores, mesmo sem serem arquitetos, têm também estudo à parte em seu livro, como o brasileiro Olendino Mendes, o norte-americano Will Eisner, com a poética obra “O Edifício” e o francês Caza com sua série “Os tempos Ominosos” na qual o autor critica a sociedade, através de metáforas visuais inserindo em seus quadrinhos desenhos de edifícios tais quais blocos de concretos sem janelas.
Como o cinema é arte irmã das histórias em quadrinhos, Edgar reconceitua o filme “Blade Runner”, fazendo uma aproximação lógica e necessária entre os quadrinhos, a sétima arte e a arquitetura através da arte de Moebius, cujos desenhos na HQ “The Long Tomorrow” (roteirizada por Dan O´Bannon), serviram claramente de fonte plagiada pelo cultuado filme com o caçador de andróides.
O livro
esclarece bem as noções de arquitetura e de urbanismo, facilitando
a compreensão ao leigo no assunto, e pontua com precisão exemplos
roteirizados de quadrinhos que metaforizam modelos consagrados do
urbanismo, como a obra “A Febre de Urbicanda”, de autoria de
Benoît Peeters e François Schuiten, cujo álbum integra a série
“As Cidades Obscuras”, idealizada em 1980 para a editora francesa
Casterman, tendo seus autores bebido em fontes culturais diversas.
Com conceitos da arquitetura, Franco identifica em “A Febre de
Urbicanda” uma teoria de análise dos modelos urbanos, desenvolvida
na Bartlett School of Atchitecture and Planning, da
Universidade de Londres, e estudada no Brasil por professores e
alunos da Universidade de Brasília (UNB). No livro, Edgar junta
informes pertinentes ao esclarecer que os projetos arquitetônicos
não são apenas úteis ou simbólicos, mas contribuem para a
transformação do espaço e acarretam influências nas relações
interpessoais.
A fim de
explicitar melhor a relação de “A Febre de Urbicanda” com tais
teorias urbanísticas, o pesquisador desfila dois modelos teóricos
estudados na arquitetura: o “Paradigma da Formalidade” o qual,
embora contenha caráter universal e advenha desde tribos primitivas
até planejamentos atuais (como é o caso da cidade de Brasília),
esbarra na assepsia total, isolando os indivíduos; e o “Paradigma
da Urbanidade”, cuja presença também é intemporal, mas prima
pela continuidade e não ruptura dos espaços, contribuindo para a
intercomunicação humana. Nesta história em quadrinhos, Urbicanda é
uma grande cidade fictícia planejada, que tem como expoente maior o
urbitecto (neologismo inventado pelos autores franceses) Eugen
Robick, com forte inclinação pelo “Paradigma da Formalidade” e
que vê seu ideário transformado ao não conseguir solucionar a
intromissão de um cubo cujas arestas começam a crescer e a se
replicar, desestruturando toda a aparente “ordem” da megalópole.
Se inicialmente o governo principia a se desesperar, a população
começa a tecer novas formas de relacionamentos entre si,
diferentemente de quando o cubo não existia, pois agora as pessoas
usam suas gigantescas arestas como pontes, inclusive retrabalhando
nelas grafismos e outras utilidades criativamente despertadas. Robick
então percebe gradualmente que este outro paradigma, embora
demonstre certa caoticidade, possui uma organização inerente única
e necessária, que influencia diferentemente os relacionamentos dos
cidadãos, fazendo-o repensar a questão humana e urbanística.
Capa da primeira edição impressa do livro de Edgar Franco
É claro
que esta história em quadrinhos é muito mais complexa, e Edgar,
como conhecedor igualmente da área dos quadrinhos e arquitetura,
consegue passar diversas outras informações pertinentes às duas
artes, enriquecendo ainda mais a simbologia contida no álbum,
demonstrando a importância essencial que pode ter uma expressão
artística como a das histórias em quadrinhos, permitindo uma
codificação e uma interpretação renovadas. Franco ainda tece mais
alguns dados relacionando a função “arquitetônica” dos
artistas das HQ ao comporem suas páginas, tanto no papel como no
computador. Ao final do livro, o autor e pesquisador conclui o
trabalho com sua história em quadrinhos “Dogmas como Pirâmides”,
elaborada especialmente para uma melhor compreensão de toda a
pesquisa, explicitando e ratificando os conceitos anteriores por ele
abordados, especialmente aqueles contidos no capítulo que relaciona
“A Febre de Urbicanda” aos dois paradigmas arquitetônicos,
apresentando na sua HQ fantástico-filosófica uma espécie de embate
entre arquitetos das duas teorias (vale lembrar que Alan Moore também
discorre acerca do poder imagístico e sua influência na mente
humana, através dos simbolismos contidos nos estilos arquitetônicos,
principalmente em catedrais religiosas, no primeiro volume da obra
“Do Inferno”). Enfim, o livro “História em Quadrinhos e
Arquitetura”, fartamente ilustrado, expõe quão necessários são
os quadrinhos como meio de expressão, pois lidam com imagens que
podem funcionar de forma distinta das de um livro teórico, trazendo
instigantes informações que podem (e devem) ser posteriormente
analisadas, ampliando e melhorando o embasamento teórico de
quaisquer áreas. Se a função de um livro é esclarecer vários
conceitos de forma concisa e até ilustrada, uma história em
quadrinhos pode auxiliar nesta tarefa, tendo sua importância como
distinta mediadora na formação educacional, como se verifica
através dos inúmeros exemplos contidos no livro ora resenhado. Como
se percebe pelo valor intrínseco da potencialidade imagística das
histórias em quadrinhos, é nítido que elas também servem de fonte
pertinente (e necessária) em cursos universitários, como por
exemplo os de artes e arquitetura, em muito auxiliando os futuros
profissionais em apontamentos e elucidações teóricas e reflexivas.
Notas:
*Gazy Andraus é Pós-doutorando
pelo PPGACV da UFG, Doutor pela ECA-USP,
Mestre em Artes Visuais pela UNESP, Pesquisador e membro do
Observatório de HQ da USP, Criação e Ciberarte (UFG) e Poéticas
Artísticas e Processos de Criação (UFG). Também publica artigos e
textos no meio acadêmico e em livros acerca das Histórias em
Quadrinhos (HQs) e Fanzines, bem como também é autor de HQs e
Fanzines na temática fantástico-filosófica. E-mail:
yzagandraus@gmail.com;
gazyandraus@ufg.br;
http://tesegazy.blogspot.com/