Entrevista concedida a Gian Danton em 16 de setembro de 2023
Ciberpajé: Foi algo fluido e natural para mim, eu comecei a escrever poesia na mesma época em que me interessei pelo desenho e por criar minhas primeiras narrativas quadrinhísticas. Foi por volta dos 10 anos de idade. É curioso perceber como de forma natural o texto de minhas primeiras HQs já era contaminado pela verve poética, já com poucos balões e diálogos e narrações poéticas conduzindo a história. Penso que a gênese de meus quadrinhos nasceu impregnada pela minha paixão pela poesia, então, já nos primeiros anos em que comecei a publicar minhas HQs nos zines brasileiros sempre haviam comentários de que o que eu fazia não era quadrinhos, era “poesia ilustrada”, algo de que discordo veementemente, sempre foi quadrinhos, só que estava nascendo ali – comigo e outros pioneiros nessa mistura singular - o gênero poético-filosófico de quadrinhos, batizado posteriormente por mim em 1997.
Você, o Gazy Andraus e outros artistas criaram o gênero poético-filosófico, batizado por você. O nome deixa a entender que o texto poético é parte essencial desse gênero. Concorda?
Sim, eu e Gazy somos 2 dos pioneiros desse gênero de quadrinhos que é genuinamente brasileiro como destacou o pesquisador Elydio dos Santos Neto em seu Pós-Doutorado realizado na Unesp em 2010 e dedicado a analisar e investigar o quadrinho poético-filosófico. A partir dessa pesquisa singular de Elydio foram inclusive publicados pela editora Marca de Fantasia os livros “Os Quadrinhos Poético-Filosóficos de Edgar Franco” e “Os Quadrinhos Poético-Filosóficos de Gazy Andraus”, apresentando as singularidades de nossos processos criativos, mas também as conexões entre eles que nos enquadram no contexto do poético-filosófico. Ainda na década de 1980, numa tentativa inicial de classificar esses trabalhos, eles foram chamados por muitos editores de fanzines de “quadrinhos poéticos”, fazendo um paralelo com a literatura, ou seja, os quadrinhos tradicionais estariam para a prosa assim como os “quadrinhos poéticos" estariam para a poesia. Posteriormente a insuficiência conceitual do rótulo “quadrinhos poéticos” para conceituar o que eu e alguns outros quadrinhistas estávamos fazendo levou-me a criar o termo “quadrinhos poético-filosóficos” (FRANCO, 1997, p.54), anexando a palavra “filosóficos” à denominação por verificar que a maioria dos quadrinhistas desse gênero também apresentavam trabalhos com a pretensão filosófica de levar o leitor a refletir sobre alguma questão existencial. Assim o termo foi adotado pelo Dr. Elydio dos Santos Neto em sua pesquisa de pós-doutorado em artes na UNESP, Santos Neto (2009, p.90) resume as características principais dessas HQs:
São, portanto, três as características que principalmente definem uma história em quadrinhos poético-filosófica: 1. A intencionalidade poética e filosófica; 2. Histórias curtas que exigem uma leitura diferente da convencional; 3. Inovação na linguagem quadrinhística em relação aos padrões de narrativas tradicionais nas histórias em quadrinhos.
Então, a intencionalidade poética é certamente uma das bases fundamentais do chamado quadrinho poético-filosófico, destacando o texto poético como parte essencial dele. Essa verve poética sempre colocou o gênero em uma posição de vanguarda e de legítima expressão artística, tratando a criação quadrinhística como um espaço expressivo para os autores trazerem à tona suas percepções imanentes e transcendentes do mundo e da experiência do viver, distanciando-os enormemente da produção comercial de quadrinhos destinada ao entretenimento e lazer. Por isso esses quadrinhos nasceram no meio paratópico dos fanzines e até hoje encontram pouco respaldo em editoras comerciais, nesse contexto é fundamental destacar a revista/prozine Mandala, editada por 13 números pela editora Marca de Fantasia em fins da década de 90 e início dos anos 2000, sendo a primeira revista brasileira a dedicar-se exclusivamente aos quadrinhos poéticos, com destaque para a HQ poético-filosófica.
Você lê poesia? Quais poetas?
Sempre li muita poesia, a poesia é a expressão literária mais pura, livre, explosiva, subjetiva e vibrante. Não é por acaso que em nosso mundo contemporâneo marcado pelo hipernarcisismo das redes sociais, pela hipercompetição, pelo pragmatismo da busca desenfreada pelo mostrar em detrimento do ter ou do ser, pela necessidade da fama a qualquer custo, que a poesia está morrendo. Tornou-se um nicho muito restrito cada vez com menos visibilidade. Mesmo em grandes feiras literárias o número de lançamentos de livros de poesia, ou mesmo o número de títulos disponíveis é muito pequeno. Vivemos em um mundo de volatilidade da informação, onde impera uma obsessão pela objetividade da comunicação, tudo tem que ser direto, curto e claro para absorver a atenção das pessoas bombardeadas pela hiperinformação. Nesse contexto, a poesia, que necessita do mergulho, da subjetividade, da entrega, de uma experiência de leitura sutil e livre de obviedades, parece estar condenada à morte. E nesse caso amplio a ideia de poética, recordando Aristóteles, para além da expressão escrita, mas para todas as expressões artísticas que nascem da subjetividade, do ruído, dos paradoxos, das zonas cinzas do ser que se insurgem contra o binarismo anticósmico que reina na comunicação digital, onde tudo é extremismo, sim ou não, preto ou branco, esquerda ou direita, deísta ou satanista. Sobre minha leitura de poesia, tudo começou aos 10 anos com a paixão precoce pelo mal do século de mestres como Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Poe, Isidore Ducasse (Conde de Lautreamónt), Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, e posteriomente fui me abrindo para outras expressões poéticas encontrando grandes escritores como Ezra Pound, T.S. Eliot, Manoel Bandeira, até o choque e maravilhamento com o encontro com o Rubaiyat, do persa Omar Khayyam, um presente sagrado que ganhei de meu amado e saudoso pai Dimas Franco. Daí avancei para a poesia e aforística oriental, encontrando obras singulares como o Tao Te King, de Lao Tse, e o poema épico indiano Maabárata. Aprendi também a amar a poesia feita por meus contemporâneos e amigos, lendo-a em inúmeros zines e publicações independentes, estou sempre aberto a novos poetas, no momento tenho lido obras instigantes do jovem poeta Breno Pitol.
Fale um pouco do seu processo criativo nas HQs poético-filosóficas.
Tenho investigado inúmeros processos criativos e possibilidades inusitadas de criação de meus quadrinhos poético-filosóficos. A revista em quadrinhos Artlectos & Pós-Humanos, com 14 números publicados pela editora Marca de Fantasia, é um dos meus principais laboratórios de experimentação artística, nela já publiquei HQs criadas a partir de experiências com enteógenos como a Ayahusca e o Psilocybe cubensis e outras técnicas de estados não ordinários de consciência como a Respiração Holotrópica, técnicas mágickas como a magia de sigilos – criando de forma pioneira no Brasil Sigilos-HQ, HQ inspirada na Postura da Morte de A.O.Spare; e muitas HQs criadas a partir de meus “rituais mágickos de presença” - técnica desenvolvida por mim na qual passo horas desenhando sem nenhum crivo da mente consciente, produzindo inúmeras imagens que posteriormente eu utilizo para gerar narrativas quadrinhísticas, dando coerência a elas com o texto poético que as amarra. Também tenho criado centenas de HQforismos, um subgênero dos quadrinhos poético-filosóficos – assim batizado por mim e pela pesquisadora de minha obra, a artecientista Dra. Danielle Barros (UFSB) – que conecta um desenho a um texto poético-aforístico que o complementa. Sendo que muitos desses HQforismos surgem de insights de minhas experiências transcendentes. Já realizei quadrinhos em parceria com um robô, em parceria com um saudoso coqueiro do meu jardim, e em exercícios de criação em brainstorming em parceria com artistas como Gazy Andraus, Elydio dos Santos Neto, Jorge Del Bianco, e até contigo, Gian Danton. Eventualmente crio narrativas mais tradicionais, mas mesmo assim com momentos de extrema expressão poético-filosófica, como nos álbuns BioCyberDrama Saga, parceria com Mozart Couto; Ecos Humanos, parceria com Eder Santos; Licanarquia, parceria com Toninho Lima. Em 2020 fui o pioneiro brasileiro a utilizar inteligências artificiais no auxílio para a criação de quadrinhos, criando a primeira HQ a usar redes neurais NST (neural style transfer) chamada “Conversas de Belzebu com seu Pai Morto”, publicada no número 1 da Atomic Magazine, e que inclusive contou com um desdobramento criativo, o EP musical de mesmo nome criado em parceria com o produtor e musicista Alan Flexa. Recentemente criei minha primeira HQ poético-filosófica de super-herói, um experimento desenvolvido com o quadrinhista Oscar Suyama e seu personagem Coruja Negra, através do qual ele criou uma sequência de 5 páginas inspirada no meu universo ficcional transmídia e mágicko da Aurora Pós-Humana e entregou-me para eu escrever o texto poético-filosófico da narrativa gerando a HQ Litania Transumanimal. Estamos inclusive criando uma HQ mais longa nesses moldes! Antes de minha parceria com Suyama, já tinha criado uma HQ nos mesmos moldes com o grande quadrinhista Bira Dantas, na qual ele partindo de um sonho que teve e utilzando-se da cosmogonia da Aurora Pós-Humana e de referências à minhas artes desenvolveu 5 belas páginas de uma narrativa chamada Planetae Post Humanus e eu criei o texto aforístico para a obra. Também criei uma HQ de ficção científica que uniu o meu universo ficcional da Aurora Pós-Humana, ao universo ficcional de viagens no tempo – Intempol, de meu amigo Octávio Aragão, ela foi publicada no álbum Intempol: Agora, que concorreu ao HQMIX 2022. Para fechar essa resposta sobre processos criativos inusitados, cito o álbum em quadrinhos O Sonho dos Deuses, ainda inédito, com uma narrativa poético-filosófica desenvolvida com esculturas e cenários criados por mim exclusivamente para ela, um dos frutos de minha segunda investigação de pós-doutorado realizada no Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo. E sigo sempre entusiasmado e instigado a explorar novas possibilidades criativas para os quadrinhos!
Alan Moore diz que os quadrinhos são uma forma de devolver às pessoas. Você concorda com essa informação?
No meu caso, a criação de quadrinhos é um processo de autocura. Utilizo o processo criativo como uma forma mágicka de autoconhecimento e autotransformação, transformando o exercício criativo em um ato de total conexão com o agora, sem a preocupação com o resultado final, mas sim em fruir completamente o processo, compreendendo como a criação daquela narrativa permite-me perscrutar o meu ser cósmico e compreender minhas idiossincrasias, possibilitando-me transformar-me interiormente. Nesse caso, a principal motivação para criar é o ato criativo em si, o momento da criação que é sempre transformador para mim. A recepção da minha obra tem um valor secundário para mim, obviamente se ela tocar as pessoas, isso me deixará alegre, mas não crio pensando nisso, pois tenho consciência de que a única transformação possível que minha arte poderá realizar é a de mim mesmo. Talvez ela sirva para incentivar pessoas que já estão em um caminho de transformação, mas não será a deflagadora desses processos. Por isso digo a todos: CRIAR CURA! A criação é o espaço mais profundo e certeiro para os processos de transmutação interiores, é o método mais poderoso para a cura interior, praticamente ignorado pelas terapias contemporâneas, mas fundamental em meu processo como artista-magista. Entendo perfeitamente o ponto de vista de Moore, no entanto discordo dele, não acredito em legados, tudo será varrido pelo inevitável fluxo das eras, até nossa espécie perecerá. E ao contrário da visão de que criar para mim mesmo seja algo egoísta e individualista, trata-se de um processo que busca a individuação – na perspectiva de Jung – envolvendo a compreensão interior da diversidade, da alteridade, da importância de conviver serenamente com outras visões de mundo na contramão do binarismo anticósmico vigente na comunicação digital, mesmo aquelas que parecem atacar nossas verdades. Ao transformar-me eu transformo o cosmos inteiro, pois sou uma imagem holográfica do universo.
Referências:
FRANCO, Edgar. “Panorama dos Quadrinhos subterrâneos no Brasil.” In. CALAZANS, F. M.A. (Org.) As histórias em Quadrinhos no Brasil: Teoria e Prática. São Paulo: Intercom/Unesp/Proex, 1997, p. 51-65.
SANTOS NETO, Elydio dos. “O que são histórias em quadrinhos poético-filosóficas? Um olhar brasileiro.” In Visualidades – Revista do Programa de Mestrado em Cultura Visual da FAV/UFG, Vol. 7 n. 1, Jan/Jun 2009, - Goiânia - GO:UFG, FAV, 2009, p.68-95.