“Os loucos abrem caminhos que os sábios trilham mais tarde"
Eduardo Marinho
Frame do videoclipe "Ciberpajé - O Enterro dos Deuses"
O ano de 2020 começou com uma emblemática mensagem de revolução e liberdade. Neste dia primeiro de Janeiro de 2020, Ciberpajé (a.k.a. Edgar Franco) lançou o novo videoclipe de seu projeto musical, intitulado “O Enterro dos Deuses”. O videoclipe é pioneiro no uso da tecnologia Deep Dream de recomposição de imagens. O resultado é uma viagem profunda, com diversas camadas interpretativas. Farei o meu melhor esforço em desvendar algumas das nuances desta obra.
A ferramenta Deep Dream, utilizada no videoclipe, fez parte das etapas iniciais de desenvolvimento de inteligências artificiais capazes de interpretar imagens, identificando objetos e discriminando suas formas. O Deep Dream foi um dos primeiros softwares desta linha a ser popularizado pela internet, propiciando o seu uso lúdico e artístico. Deep Dream (do inglês, “sonho profundo”) recebe este nome por conta da aparência surrealista e onírica das imagens que gera.
O Deep Dream utiliza estratégias de algoritmos que tentam forçar o reconhecimento de determinados padrões visuais, contrastando a imagem recebida com um banco de imagens previamente analisadas e reconhecidas. De tal modo, a inteligência artificial gera uma nova imagem, inscrevendo na imagem original a sua interpretação sobre os padrões de forma e cor da imagem original.
Como o Deep Dream foi treinado para identificar formas de animais, as imagens que resultam de seu processamento criam focinhos, olhos, orelhas, rabos, entre outras imagens animalescas. Aqui reside uma das camadas interpretativas: O Deep Dream está, a todo instante, buscando enxergar as essências animais e primitivas por trás do videoclipe. Sua conexão com o tema do vídeo é arquetípica, retomando ao estado de desenvolvimento primal e instintivo.
Frame do videoclipe "Ciberpajé - O Enterro dos Deuses"
Carl G. Jung descreveu a experiência hierofânica – o contato com o sagrado – como um episódio de poderosa inspiração gnóstica. O ser humano ancestral costumava reconhecer uma parte de sua própria alma nos objetos ao redor de si. A experiência de “perda da alma”, manifestada como um grande vazio interno, era apaziguada quando este indivíduo identificava esta parte perdida de si em uma árvore, um rio, uma pedra, um trovão, ou ainda, em um animal! Assim nascia uma nova divindade natural e, de igual modo, muitos animais são identificados como sagrados ou mesmo divinos em diversas culturas ao redor do mundo.
Dentre estas divindades naturais, existam os tricksters cujas representações arquetípicas são comumente reconhecidas por figuras de animais – algumas vezes, antropomorfizados. Tricksters simbolizam uma conexão com os instintos e com a natureza, além de revelarem o aspecto dual da nossa relação com os fenômenos naturais. A natureza não é pura bondade e generosidade, ela também é astuta – por vezes, traiçoeira – e só recompensa àqueles que aprendem a genuinamente conviver com ela em harmonia. Esta é a natureza dos tricksters. Ao utilizar a técnica do Deep Dream, Edgar Franco e C.N.S. dão vida, cor e movimento para estas divindades naturais a cada frame do vídeo.
Frame do videoclipe "Ciberpajé - O Enterro dos Deuses"
Na animação gráfica do vídeo, podemos reconhecer uma pirâmide egípcia no meio do deserto. De dentro da pirâmide, existe um orbe roxo brilhando no meio da escuridão do crepúsculo. Ao longo da animação, vemos a pirâmide ser revertida, camada a camada, de modo a ser recomposta como uma pirâmide de cabeça para baixo, libertando o orbe de seu cárcere de pedra.
A animação vem acompanhada da potente voz do Ciberpajé, que ressoa com dizeres sobre como o Enterro dos Deuses despertará a pós-humanidade: uma era de empatia e amor. Conectadas as chaves de compreensão, fica claro que a inversão da pirâmide alude a um simbolismo anárquico de desmantelamento das relações de poder. Neste contexto, o orbe roxo representa o Self – o núcleo psíquico da nossa consciência primal, instintiva, além de símbolo da nossa totalidade e união com a consciência universal.
Identifico a pirâmide do vídeo como egípcia por conta da recorrência simbólica provocada por esta associação. A Civilização do Antigo Egito exerce poderosa influência sobre a cultura ocidental. É uma civilização tipicamente caracterizada pela associação entre Estado e Religião. Seus Deuses são animais antropomorfizados, aludindo à enorme probabilidade de terem evoluído a partir de divindades naturais – tricksters – mas terem claramente evoluído para símbolos em confluência com o Poder e a Autoridade.
Frame do videoclipe "Ciberpajé - O Enterro dos Deuses"
Inverter uma pirâmide egípcia equipara-se a subverter um dos símbolos mais essenciais do Poder – e da escravidão subjacente de seu modelo civilizatório. Há muitos milênios vivemos sob o domínio de mitos solares, de Deuses salvadores, com seus messias e profetas. O mito é tão impactante que acaba sendo assimilado até mesmo por aqueles que atestam lutar contra o poder. Muitos combatentes do sistema ainda prestam adoração e subserviência a líderes políticos e figuras públicas influentes.
“O Enterro dos Deuses” anuncia a queda de um modelo de humanidade prepotente e autoflagelante. Apenas quando cada indivíduo aprender a ser mestre de si e responsável por sua própria cognição, caminharemos para uma era de empatia, amor e harmonia. Os deuses precisam morrer a fim de libertarem a humanidade, ou melhor dizendo, a pós-humanidade.
Assista ao videoclipe "O Enterro dos Deuses" clicando na imagem abaixo:
*Fausto Ramos é artista multimídia, magista, licenciado em Matemática e criador do portal Caosofia, onde compartilha conteúdos em vídeo e textos sobre Magia, Psicologia, Filosofia Arte e Cultura. No momento, suas pesquisas se concentram no campo da Psicologia Junguiana e suas relações com a Magia do Caos.
Acrédito que ninguem poderia ter escrito uma resenha tão perfeita e completa sobre este maravilhoso vídeo. Parabéns pelo ótimo trabalho onde conseguiu descrever com palavras de forma plena o que ocorre no video.
ResponderExcluir