segunda-feira, 23 de novembro de 2020

[RESENHA] EP CIBERPAJÉ - MÁQUINA HIPER-REAL: o real excessivo que está mais calcado em uma realidade alienante, por Gabriel Pinheiro

Arte de Ciberpajé

A máquina hiper-real (OUÇA O EP AQUI) não é exatamente o real prático das nossas percepções. É o real excessivo que está mais calcado em uma realidade alienante, oriunda dos sistemas coletivos que sustentamos diariamente, que serve de subterfúgio de si mesmo, da consciência do cemitério do inconsciente, repleto de fantasmas de tudo que podia ter sido, feito e criado. Não se trata apenas de uma fuga do arrependimento, como pode-se pensar, mas uma fuga do que pode ser feito agora ou amanhã, pois aquela energia criadora de ser melhor, de ser “mais de si mesmo”, sempre estará ali residente.

É assim que vejo o ponto de partida desta obra absoluta e ao mesmo tempo tão intimista do Ciberpajé, em parceria com Hari Maia. Partindo do princípio de que para se ter a experiência da arte é necessário captar todas as suas nuances, de forma íntima e profusa, sendo objetivo apenas na hora de se expressar quanto a mesma. Nesse sentido, eu vou vislumbrar as três produções presentes neste trabalho: plástica, sonora e poético-filosófica.

O estilo onírico e psicotrópico está presente aqui, como marca d’água de um artista que sempre enxerga dentro de si uma cosmogonia. Nesse âmbito, a imagem tem uma paleta de cores quase fortuita e insinuante que, ao brincar com os padrões da percepção, denota a assinatura intimista do artista ao mesmo tempo que revela universalidade poética. O Ciberpajé é um artista da experiência e, como tal, busca fluir conforme as sensações intensas e com impetuosidade crítica, quase animalesca, característico de seu estilo xamânico e misterioso.

Ao optar pelas figuras de dois crânios, um corvo e um humano de máscara de gás, a ideia nos compele a esperar uma forte acidez crítica sobre as eventualidades do cotidiano da pandemia e as relações humanas e sistêmicas, com suas ações de mesquinhez, covardia e inconsequência. Sim, posteriormente sua poética nos dará esse âmbito de compreensão, mas como toda boa e genuína arte, ela não se estabelece apenas em um nível semântico. As máscaras mortuárias que a imagética futurista e caótica nos faz defrontar são apenas figuras comuns que refletem a nossa própria mortalidade e nos atravessam ainda mais em um nível ontológico.

Desse ponto, podemos pressupor sobre o que virá ao ouvirmos os acordes e as recitações de tons quase cândidos do Ciberpajé. Particularmente, este trabalho sonoro com Hari Maia me fez recordar algumas nuances do estilo de artistas como Trent Reznor (Nine Inch Nails) e Atticus Ross, um pouco diferente de outras abordagens sonoras aos aforismos do Pajé, que lembravam bastante o experimentalismo sinuoso do grupo Einstürzende Neubauten e, às vezes, a explosão sonora do Front 242. Porém, tais menções são apenas notas de semelhança em um momento ou outro, visto que o trabalho aqui possuí uma assinatura particular que destoa de qualquer outra produção com estilo próximo daqueles citados.

A poética aforística do Ciberpajé é afiada e pode ser incômoda, mas a graça está na beleza que emana de sua mensagem, sempre carregada de profundo amor e apreço pela arte da vida em sua forma mais intensa. Nesse aspecto, o poeta é exímio em produzir nuances de experiência e uma multiplicidade de sensações. As mensagens são francas e sem rodeios, mas sensíveis e fluem naturalmente com a sonoridade, que nos abraça de início mas, quase que de forma instantânea, nos chacoalha dentro de nossas bolhas cotidianas. 

Em toda a produção de arte do Ciberpajé é possível observar certas assinaturas claras que, como todo artista e ser humano, denota sua própria pessoalidade. No entanto, no rico e prolífico curso de criação desse artista, tão comprometido com a vida, reinam signos que buscam sempre se destoar com o que foi dito anteriormente, de uma forma ou outra. Neste projeto com o musicista Hari Maia não foi diferente, pois o Ciberpajé busca trazer novas nuances de sentido e expressão que são, por princípio, a raiz de qualquer fazer artístico, como, por exemplo, a evidência ao deixar sua parceria criativa ressoar sua própria voz. 

Neste momento, não vislumbramos apenas um espírito artístico, mas uma composição multidisciplinar que impera sobre uma harmonia relativa. Exatamente neste aspecto que reside a demonstração metalinguística de reproduzir a vida por meio da arte em seu signo mais íntimo pela qual artistas como o Ciberpajé se debruçam tão arduamente.

*Gabriel Pinheiro é escritor, ensaísta e educador. 

Saiba mais e ouça o EP "Ciberpajé: Máquina Hiper-real" clicando na arte de capa abaixo:






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