quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

[Resenha] Álbum em quadrinhos ECOS HUMANOS: Se você é você mesmo, como poderá se trair? Se está livre de tudo, o que poderia perder? Por Larissa Dias


Primeiro queria dizer que achei ousada e extremamente interessante a proposta de um trabalho sem texto. As imagens que falam por si! E como falaram à mim. Não sei se pude compreender um milésimo dos inúmeros significados, mas fiquei muito feliz com as reflexões que fiz. Algo bem egoísta mesmo, mas que era a única forma como eu conseguia consumir essa dádiva nesse momento. 

A capa me lembrou o HQforismo e Chave da Transmutação, O Sereno, do Ciberpajé. Ela me traz o instinto animal, conformado diante da morte porque sabe que ela faz parte do ciclo da vida, um ciclo de transformação, o qual é tão bem representado pela borboleta! O lobo com o terceiro olho traz essa fera que enxerga além. A fera que vê além da presa, além da próxima refeição, além da simples procriação. Seria um estágio humano dos animais ou um estado divino deles? Mas não sei se é bom ou se é ruim. A criação do universo, o surgimento desses dois seres. O cajado traz uma sabedoria e ao mesmo tempo um apoio, que ali é representado também na dupla de personagens.

A refeição da fruta, essa manga que não é adequada ao alimento do lobo. Colher não é algo dele, não é natural dele. Ele precisa caçar. Engraçado que a manga é minha fruta preferida… O tucano é um animal extremamente interessante, principalmente depois que descobri que ele se alimenta de macacos e de pequenos cães, enquanto estava em Campos do Jordão e o senhor que era dono da pousada era fotógrafo e me mostrou registros dele com imagens dos tucanos devorando esses animais. 

No álbum, o lobo decide usar o que ele carregava para atingir algo além das suas possibilidades. E talvez façamos isso, não? Usamos aquilo que temos para chegar onde nem imaginamos. Devorar a carne e ser feito daquilo que se come. É um conceito incrível, “do que nos alimentamos”? E como nos transformamos a partir disso? Quando o alimento não é literal, físico, depende de tudo aquilo que estamos inserindo na nossa vida, desde alimento cultural até o que assumimos de responsabilidades. Eu tive que deixar essa bela “sobremesa” (o álbum Ecos Humanos), que hoje leio, de lado por um tempo porque queria assumir responsabilidades para que algo ganhasse “corpo”. 

Então, somos completamente responsáveis por aquilo que nos alimenta, inclusive os excessos ou as faltas. A mulher leopardo que surge é linda e exuberante, seria um mundo de possibilidades, mas o costume de exterminar aquilo que não conhecemos, pelo medo ou pelo modo repetitivo sob o qual nos encontramos, faz com que a possibilidade se perca. Mas a dor e a revolta daquele que está mais desperto não o impedem de se alimentar daquele mesmo erro. Além disso, essa cena me trouxe algo como construir tantas barreiras que ficamos intransponíveis, me lembrou o personagem Spike dos X-Men. A fonte do alimento sagrado que é destruída, gera a doença e a morte, e consequentemente, a libertação das representações simbólicas que as vezes nos formam, mas que as vezes nos acorrentam. Inclusive o crânio, que traz algo de um companheiro para sempre, mas que sempre te lembrará também que ele já não pode estar mais ali. A finitude da vida. E diante de tudo isso, o cogumelo, aquele que abre as fronteiras daquilo que se é. Te faz se encontrar com a serpente, que foge amedrontada diante da libertação simbólica. 

Se você é você mesmo, como poderá se trair? Se está livre de tudo, o que poderia perder? Vendo isso, surge a cena mágica: o alimento da mãe leopardo. Sugar o seio de algo magnânimo, o contato com essa fêmea oposta, como cães e gatos, mas quando ela está com um filho, ela nutre. Se alimentar daquilo que é diferente, é uma cena sensualmente sábia. E ela então, volta aos seus instintos mais primitivos, aqueles que nos salvam e nos condenam. Mas é no desespero, olhando de frente para a morte que tudo ressurge. Aquilo que se foi, se apresenta e bate as asas na frente do seu olhar, impossível de não querer ver. Daí a libertação não ocorre mais por uma condição externa, mas porque algo dentro de você te mostrou uma finitude que apressa os processos de evolução. Não se pode ficar parado enquanto a vida anda. Então, você corre! E diante do desespero, das lágrimas que lavam a alma, surge a nova visão, aquela que te mostra a transformação e a verdadeira liberdade. E o voo que você tanto temia, finalmente chega e você então decide simplesmente ver onde isso vai dar. E quem sabe… Salta para algo novo e desconhecido... 

A contra capa me trouxe o símbolo da morte que enfeita aquilo que nos apoia durante toda a vida, coroado pelos processos transformacionais com os quais vivemos. 

P.S. Acabei de ler agora e estou com uma sensação terrível de enjôo. Algo mexeu, hein! Talvez a arte aqui tenha cumprido seu papel. 

*Larissa Dias é Mitóloga, Psicoterapeuta e editora da revista Mitologia Aberta 
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Saiba mais e adquira o álbum em quadrinhos Ecos Humanos, com arte de Eder Santos e roteiro do Ciberpajé (Edgar Franco), clicando na arte de capa abaixo.




Um comentário:

  1. Parabéns pela resenha, Larissa. Obviamente amplia mais ainda esta maravilhosa obra em quadrinhos "mudos"...mas que dizem muito mais do que vemos nela!

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