sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

[Entrevista] Horror & Êxtase Supremo: Ciberpajé em Experiência Visionária com Cogumelo Psilocybe cubensis

Ciberpajé fotografado por Daniel Rizoto em técnica de Ligth Painting

Ciberpajé entrevistado pela IV Sacerdotisa Danielle Barros 
(Artista multimídia e doutora em Ciências pela Fiocruz-RJ)

Essa entrevista faz parte de uma série de entrevistas que tenho realizado com o Ciberpajé Edgar Franco enfocando múltiplos aspectos de sua obra artística, pesquisa, vida e ideário. Essa é a quarta da série de entrevistas que abordam seus processos criativos a partir de ENOC - estados não ordinários de consciência. A primeira foi Viagem Psiconáutica com Utilização de Cogumelos (Psilocybe Cubensis) e Processos criativos de Histórias em Quadrinhos Poético-Filosóficas. A segunda entrevista foi "Respiração Holotrópica: Estados ampliados de consciência e processos criativos" sobre a primeira experiência com o referido método. A terceira entrevista, abordou a sua segunda experiência com a técnica da respiração holotrópica "[Demônio & Ouroboros] Respiração Holotrópica, estados ampliados de consciência e processos criativos: II Experiência ".
Nesta quarta entrevista vamos abordar a viagem psiconáutica com Psilocybe cubensis realizada no dia 10 de dezembro de 2017 e considerada a mais impactante  já experienciada pelo Ciberpajé com a ingestão de cogumelos. 
O Ciberpajé Edgar Franco é artista transmídia, pós-doutor em arte e tecnociência pela UnB, doutor em artes pela USP e mestre em multimeios pela Unicamp, atualmente é professor associado I da Faculdade de Artes Visuais da UFG e professor permanente no Programa de Pós-graduação - mestrado e doutorado - em Arte e Cultura Visual na mesma universidade. 
Destacamos que as experiências de criação e pesquisas com ENOC baseadas em cogumelos P. cubensis realizadas pelo Ciberpajé são independentes de qualquer instituição, sendo realizados pelo artista sem vinculação institucional de nenhuma ordem.

1- Conte-nos como surgiu esta oportunidade de experienciar novamente Psilocybe cubensis?

Na manhã do dia 10 de dezembro de 2017, caminhando com meus cães e a I Sacerdotisa Rose Franco (minha esposa) pelas matas do Campus Samambaia da UFG em Goiânia – em uma área utilizada como canteiro experimental pela veterinária -, onde circula gado, achei por acaso um enorme cogumelo Psilocybe cubensis. O maior que já tinha visto em minha vida! Coletei-o delicadamente e fiquei observando-o estupefato, era enorme e exuberante. Num ato meio tolo e inconsequente decidi comê-lo ali mesmo, pois tinha lido em fóruns sobre cubensis que cogumelos grandes costumam ter pouca quantidade de psilocibina. A I Sacerdotisa deu duas pequenas mordidas e comentou do sabor azeitado do cogumelo. Eu o comi inteiro, apenas separei parte do talo com o enraizamento que ficava próximo do esterco de vaca e joguei fora.


Ciberpajé com cogumelo Psilocybe cubensis colhido no mesmo pasto alguns dias depois da experiência narrada nessa entrevista. O cogumelo da experiência era pelo menos 3 vezes maior do que o da foto (Foto do Ciberpajé)


2- Você já vivenciou experiências anteriores de expansão da consciência com cubensis, ayahuasca, respiração holotrópica, harmonização quântica ao som de tigelas de cristal de quartzo, processo criativo ritualístico, meditação, entre outros. Gostaria de saber o que distingue esta experiência das outras em relação ao impacto das sensações vivenciadas?

Considero essa experiência em especial a mais fabulosa e impactante que já tive com os Cubensis e uma das mais transformadoras de minha vida, mesmo vivenciando o extremo horror do seu início. Pois bem, 20 minutos depois de eu ter comido o cogumelo, chegamos em casa, deixei os cães – Anton & Clara - no canil, dei comida a eles e fui para o banheiro para tomar um banho, pois sairíamos para uma festa de fim de ano, era por volta de 10:30 da manhã. 
Eu achei que no máximo teria a percepção um pouco alterada pelo cogumelo, pois acreditei que ele tinha pouca psilocibina. Não preparei-me para o impacto do que viria, a experiência mais fantástica e terrorífica com o cubensis. Entrei no banheiro de luzes apagadas e tirei a roupa e sentei no vaso. A experiência começou de forma abrupta e visceral, senti forte náusea, sensação de pânico e o ambiente do banheiro tornou-se uma paisagem tenebrosa, horrível, escura, gigantesca. As linhas do piso – formadas pelos azulejos - eram marcas que delineavam um universo de formas negras em movimento, grandes sombras avançando sobre mim. Experienciei uma sensação de grande agonia, as criaturas sombrias pareciam envolver-me, sufocar-me. Saí do banheiro nu e desesperado, fui até a cozinha dizer à I Sacerdotisa que estava com medo e que não iriamos mais à festa. A sensação de náusea, medo e desespero era grande. Ela assustou-se ao ver-me nu e percebeu que eu estava com taquicardia, olhos saltados e sudorese.
É importante relatar que nunca, em todas as experiências como ENOC que tive vivi algo tão aterrorizante, foi brutal. A I Sacerdotisa falou em médico, eu disse não e pedi que me acompanhasse e fui deitar-me no sofá da sala – dizia a mim mesmo de forma mântrica “que era a experiência”, e ali percebi como fui inconsequente e petulante ao imaginar que poderia comer o cogumelo e seguir normalmente para a festa de fim de ano, minimizando seus efeitos e querendo transformar aquilo em algo trivial. O cogumelo mostrou-me como devo respeitá-lo, pois todas as minhas experiências anteriores foram realizadas cerimonialmente e ritualisticamente, sempre preparando-me para a ingestão do enteógeno.
Na sequência – como salientei - deitei-me no sofá da sala e fui tentando acalmar-me naturalmente, dizendo a mim mesmo tratar-se de uma experiência transcendente. Pedi que a I Sacerdotisa ficasse ali comigo. Gradativamente o terror inicial foi dando lugar a uma sensação de medo controlado, as paredes da sala formavam padrões estranhos e comecei a sentir uma conexão entre tudo. Sons da rua, imagens na parede, cheiros, tudo parecia criar uma sinfonia visual auditiva e olfativa que tinha uma lógica intrínseca cósmica. A experiência se desenrolou por mais 6 horas e foi impressionante pela quantidade de sensações visões e por sua força e qualidade como vivência, cada estágio trouxe-me impactos que eu não imaginava.
Reitero que petulantemente acreditei que só teria minha percepção alterada de forma “moderada” ao comer o cogumelo, então fui MUITO SURPREENDIDO! Uma das teorias racionais para tentar explicar essa experiência de horror extremo inicial é a de que entrei no banheiro negando que algo forte aconteceria, pois sairíamos logo pra uma a festa de fim de ano, ou seja, a princípio eu queria continuar com minha vida ordinária e cotidiana mesmo comendo o cogumelo, por isso fui advertido pela natureza do enteógeno de sua força e sacralidade.

3 – Você cita “estágios” da experiência, quais seriam eles?

Na verdade essa coisa de estágios é uma tentativa racional de dividir o indivisível, mas para o registro racional da experiência ajuda-me a revivê-la. Dividi-a assim em 5 estágios a partir das sensações mais pregnantes em cada um: Estágio 1 – Horror e Desespero, Estágio 2 – Medo e Reconexão , Estágio 3 – Serenidade e Enlevo, Estágio 4 – Êxtase e maravilhamento, Estágio 5 – Harmonia e Integralização.
O Estágio 1 foi rápido e já relatado na segunda questão. Ele durou uns 10 a 15 minutos e foi realmente desesperador, mas logo deu lugar ao estágio 2 em que fiquei por cerca de 30 minutos deitado no sofá vislumbrando formas nas paredes, ainda com uma sensação de medo que foi gradativamente tornando-se uma percepção de reconexão com tudo até entrar no terceiro estágio. Isso aconteceu cerca de 50 minutos decorridos do início das sensações e quando já estava sereno, após a percepção de profunda conexão entre as imagens, formas, sons e odores à minha volta. Assim decidi levantar-me do sofá para fruir melhor a experiência em outros espaços, entrando no Estágio 3.

4 – E como foi esse Estágio 3, quais as sensações e visões mais pregnantes dele?

Esse estágio foi marcado por uma sensação profunda de serenidade e equilíbrio, com visões de grande beleza e fluidez. No sofá fui acalmando-me e a experiência tornando-se mais agradável, vesti novamente minha cueca e shorts – até então estava nu. Decidi que iria para o jardim. Pedi a I Sacerdotisa para pegar uma cadeira pra mim, mas esse terceiro estágio se desenrolou durante um longo tempo antes de eu sair para o jardim, vivendo a experiência no interior de casa. Ao levantar-me do sofá em que estava, fiquei estupefato e profundamente maravilhado ao olhar para dois dos gatos que vivem conosco que estavam deitados no outro sofá. Eram Giordano Bruno – peludo e de pelagem branca e amarela, e Abismo – negro e de pelo curto. Sentei no chão ao lado deles só para observá-los, eles pareciam enormes, quase como leões, e de seu corpo emanava uma luz vibrante e fosfórica. Não consegui segurar o meu riso de emoção ao sentir o maravilhamento e enlevo de observar tamanha beleza, comentava com entusiasmo como eles eram lindos, eu até deixei cair uma lágrima. Fiquei o que pareceu-me uma eternidade olhando para eles. É uma sensação difícil de explicar, o enlevo que senti. 

Gato Giordano Bruno (Foto do Ciberpajé).

Gato Abismo no sofá da sala do Ciberpajé (Foto do Ciberpajé)

Levantei-me depois de um longo tempo observando-os e apoiei a mão na parede. Nesse momento fitei um dos quadros com minha arte e ele ganhou vida. As formas tridimensionalizaram-se ganhando volume, e as criaturas presentes nele pareciam vivas e respirando, o olho no centro da arte observava-me e piscava.  A tinta verde da parede parecia formar uma dimensão densa e bela em que o quadro flutuava no ar. Decidi ir ao banheiro antes de sair pro jardim, e dessa vez foi diferente, o banheiro com a luz acesa era um lugar mágico com portas abertas pra inúmeros lugares. Vi formas de carruagens em disparada na parede frontal e fiquei um bom tempo ali observando-as correrem alucinadamente. Eram muitas, umas 10 talvez, o vento batendo, eram imagens de silhuetas das carruagens, mas perfeitas, com o condutor e uns 6 cavalos cada uma.


Quadro  na parede da sala da oca do Ciberpajé, integrou as visões da experiência (Foto do Ciberpajé).

Saindo do banheiro decidi escutar música, entrei no meu estúdio e a I Sacerdotisa foi comigo. Lembrei-me que tinha um vinil na vitrola. Por uma louca e imponderável sincronicidade, o vinil em questão era "Wildhoney", da banda Tiamat, no qual a segunda faixa do lado A “Whatever That Hurts” tem uma letra que fala de cogumelos e psilocibina! 


Vitrola com o vinil "Wildhoney", da banda Tiamat, no qual a segunda faixa do lado A “Whatever That Hurts”, no estúdio do Ciberpajé (Foto do Ciberpajé).  

Coloquei o lado A pra tocar e logo após a introdução chamada "Wildhoney", entrou a faixa em questão. Eu coloquei minha mão esquerda sobre a madeira do armário em que fica a vitrola e sentia a vibração da música. Foi a experiência sonora mais alucinante de minha vida, eu sentia a música vibrar em cada célula do meu corpo e tornava-me suas ondas. Era sublime e estranho, eu não ouvia a música, eu era a música!  A I Sacerdotisa pegou em minha mão direita e conectou-se a mim, agachados no chão, minha mão esquerda seguia tocando a madeira. Nessa hora ali pareceu-me que a I Sacerdotisa integrou-se também às ondas musicais, meus pés plantados no chão – tirei os chinelos – de repente o cosmos inteiro era a vibração daquela música e eu era parte daquilo. Senti então meu corpo tornar-se madeira e o da I Sacerdotisa também. Na sequência éramos esculturas vibrantes e pulsantes em madeira. A sensação era tão incrível que ficamos ali durante o tempo que durou o lado A inteiro do disco, ouvindo todas as faixas. Nesse momento a I Sacerdotisa relatou efeitos da psilocibina, ela via o disco na vitrola formar montanhas e como se flutuasse e derretesse, foi o único momento da experiência em que ela relatou claramente os efeitos da psilocibina, lembro aos leitores que ela deu apenas duas mordidas muito pequenas.  
Esse estágio fecha com a minha última parada antes de seguir para o jardim de casa, resolvi observar-me no espelho da sala de jantar. Eu estava multicolorido feito um arco-íris e emanavam de mim - como uma aura de raios - feixes de luz descontínuos, lembrando infinitas linhas coloridas tracejadas saindo de meu corpo. A imagem tinha relação direta com a concepção geral de arte psicodélica. Ainda pretendo fazer um autorretrato inspirado nessa visão. Sai para o jardim e entrei naquele que considero o quarto estágio da experiência.

5 – Quais as singularidades desse quarto estágio?

Finalmente fui para um ambiente de natureza, o jardim de casa que tem 2 jabuticabeiras, um coqueiro, um pé de acerola, um cajueiro, duas pitangueiras, além de várias PANCS (plantas alimentícias não convencionais), como uma frondosa planta ora pro nobis, cará do ar, babosa, entre outras. E também destaco um enorme pé de abóbora cambutiá que cresceu naturalmente no local, e se espalhou pelo chão com folhas enormes.


Foto do jardim da Oca (casa do Ciberpajé), em Goiânia (Foto do Ciberpajé).

A I Sacerdotisa fez questão de levar a cadeira de fios para mim – ainda estava um pouco preocupada pela minha reação inicial com a experiência. Sentei-me ali e comecei a observar o jardim, era tudo maravilhoso, estupendo, estava em êxtase ao observar as plantas, pareciam luminosas como faróis, as cores resplandecentes saltavam das folhas, eu parava em uma folha e ficava observando encantado cada detalhe e elas pulsavam. Uma das folhas do pé de abóbora que estava a uns 4 metros de distância de mim pareceu emitir feixes de luz verde-amarelada e com certos detalhes em vermelho. Ela pulsava como se respirasse e senti que conversava comigo, num diálogo silencioso que nos conectava. Um dos HQforismos que criei inspirado na experiência foi baseado nela. Passei um tempo longo observando detalhes dessas criaturas vegetais, todas pulsando, iluminando e respirando. O pé de acerola à minha frente tinha marcas de unhas dos gatos e vi surgirem inúmeros seres nesse tronco arranhado, eram imagens de seres alados, borboletas, mariposas, aves e até dragões, todos com uma tonalidade ocre, nas mesmas cores do tronco, como se fossem pareidolias vivas e mutantes.


Algumas folhas do pé de abóbora do jardim da Oca (Foto do Ciberpajé)

HQforismo do Ciberpajé, criado no dia seguinte à experiência, tentando lembrar de memória o brilho e cores que saltavam da folha.


Os odores do jardim eram vivos, sentia o cheiro das folhas de cada árvore só de olhar para elas, eram cheiros únicos, sutis. Depois de um tempo a I Sacerdotisa estava colhendo jabuticabas temporonas num dos pés, e eu permanecia ali sentado em êxtase, então ela trouxe uma jabuticaba para eu comer. Foi mais um momento sublime, a jabuticaba parecia um licor com mil sabores, e quando eu mordi as sementes e a casca, elas explodiam formas e cores na minha frente. Era como se a cada sorver da fruta surgisse um espetáculo. Nossa o que foi aquilo! Impossível descrever, a síntese é dizer que foi a coisa mais saborosa que comi na vida. 


Detalhe da jabuticabeira onde foi colhida a jabuticaba experimentada pelo Ciberpajé (Foto do Ciberpajé).

Depois lembrei-me que tínhamos uvas em casa e pedi que a I Sacerdotisa me trouxesse um cacho. Peguei-o já estupefato por sua beleza, eu observava-o e cada uva era como um planeta, eu via os mínimos detalhes da superfície de cada planeta, a unicidade vibrante de cada uva. Elas eram lindíssimas e singulares. Então comecei a ver meu reflexo numa das uvas e o reflexo tornava-se uma caveira e voltava a ser eu, isso durou um tempo, essa caveira que ia e vinha ali na uva que era um planeta em minha mão! Depois ao comer as uvas sentia como se mergulhasse o corpo inteiro numa uva enorme, parecia que todos os meus poros sorviam o caldo da uva, era algo insano.


Parede do jardim da Oca do Ciberpajé na qual desenrolaram-se inúmeras visões (Foto do Ciberpajé).

Logo após essa experiência gustativa sem precedentes eu voltei a fitar o jardim. Uma das paredes ao fundo possui manchas da pintura que descascou, passei a fitar a parede e ela pareceu-me uma tela tridimensional. Inicialmente vislumbrei ali um rosto de mulher, muito delicado e sereno, de olhos fechados a princípio, mas que se abriram e fitaram-me profundamente - uma das artes que utilizei na capa do EP "Ciberpajé Vida que Pulsa" foi baseada nessa visão. 


Desenhos inspirados no rosto feminino visto durante a experiência e utilizado como parte da arte de capa e encarte do EP "Ciberpajé - Vida que Pulsa", parceria com a banda "Mensageiros do Vento".


Depois começaram a descortinarem-se múltiplas imagens de seres que se mutavam a todo instante, e eram conectados por vários olhos, dos olhos iam surgindo novas formas, principalmente as cabeças dos seres, alguns lembravam claramente serpentes, outros cabeças de aves, cães, lobos e felinos, também elefantes, pacas, ratos, javalis. As formas mutavam-se sem parar e o que aparecia eram basicamente as cabeças dos seres conectando-se de diversas maneiras. As imagens iam de tons ocres até multicolores, depois de um tempo começaram a formarem-se também nessas mutações faces humanas e humanoides e alguns crânios humanoides e animais. Tenho criado vários desenhos baseados nessas imagens mutantes, inclusive a arte da capa do EP “Ciberpajé – Vida que Pulsa”, utiliza artes baseadas também nessas visões. Considero-as o fim do estágio 4, pois tive vontade ir ao banheiro urinar novamente e levantei-me.


Arte criada pelo Ciberpajé a partir das visões de faces de seres mutantes que se formavam na parede do jardim da Oca. Foi utilizada na capa do EP "Ciberpajé - Vida que Pulsa".

6 – E o que pode nos falar desse estágio 5?

Ele começa com minha ida ao banheiro, dessa vez interrompida por uma parada para olhar-me no espelho do corredor onde vivi uma experiência que poderia ser aterradora para alguns, mas que foi harmoniosa e epifânica para mim. Eu estava sem camisa, de shorts, e me via no espelho – com a visão periférica – até a altura dos joelhos. De repente meu rosto começou a apodrecer e derreter, eu via os vermes roendo minhas carnes na face e no resto do corpo, como se a putrefação do meu corpo fosse acelerada, assisti aquilo até estar diante de um corpo quase totalmente descarnado, mas ainda repleto de vermes e insetos alimentando-se. Curiosamente não sentia temor ou asco, nada disso, assistia com serenidade e uma sensação de profunda harmonia a sequência natural de meu ciclo de degradação física. Logo a carne começou a retornar ao esqueleto, mas minha cabeça começou a mutar-se na de animais, o primeiro deles foi um asno, depois elefante, um felino, uma espécie de canídeo e mais ao final um grande lagarto. Agora percebo que ali vislumbrei todas as formas básicas animais da biologia terrestre em mim. 


Espelho do corredor da Oca do Ciberpajé (Foto do Ciberpajé).

Fui ao banheiro depois dessas visões e voltei para o jardim. Sentia uma harmonia profunda, um sentido intenso da perfeição de todas as coisas. Os sons ambientes que misturavam crianças brincando na rua, vozes, uma música distante e cães, pareciam formar uma sinfonia absolutamente sincronizada e coerente. Fechei os olhos e me vi numa floresta densa, os sons do ambiente eram agora os sons da floresta com todos os seus insetos, animais e plantas. Sentia os barulhos das plantas crescendo sintonizados aos dos insetos saltando e cantando, dos animais movendo-se e dos rios fluindo. Tornei-me a floresta, fiquei ali fruindo essa sensação de completa integralização por um bom tempo. Até que fui chamado pela I Sacerdotisa para almoçar, já eram mais de 17:00 horas. A experiência tinha transcorrido por 6 horas e foi realmente inacreditável se considerarmos que eu ingeri apenas 1 cogumelo, e em experiências anteriores tinha ingerido até 8.

7- Você criou alguma obra artística durante a experiência ou depois, sob a influência da mesma?

Normalmente eu preparo o ambiente de forma ritualística para realizar uma experiência de ENOC, separando material de desenho inclusive. Mas dessa vez foi algo inesperado, portanto não ouve preparação prévia, e não desenhei durante a experiência. No entanto, considero essa viagem psiconáutica uma das com maior força visionária que já experienciei, portanto, já criei pelo menos uma dezena de desenhos baseados na experiência, alguns servirão para HQforismos visionários, e outros para outras finalidades. A capa criada para o EP do Projeto Ciberpajé, intitulado “Vida que Pulsa” - parceria com a banda baiana “Mensageiros do Vento”, e lançada em primeiro de janeiro de 2018 pela Lunare Music, foi completamente criada com desenhos inspirados na experiência. O número 12 de minha revista em quadrinhos Artlectos e Pós-humanos (Editora Marca de Fantasia) trará alguns HQforismos e HQ baseados nela. Penso que ela me inspirará criativamente por um longo tempo, pela transmutação interior que provocou e provoca e pela intensidade das imagens vislumbradas.


Arte de capa do EP "Ciberpajé - Vida que Pulsa", parceria com a banda "Mensageiros do Vento" - Clique sobre a capa e ouça o EP na íntegra.

Arte para HQforismo inspirada na experiência visionária. Será publicada na revista "Artlectos & Pós-humanos #12" - no prelo.

8- Você sempre destaca em suas entrevistas sobre experiências com uso de substâncias que promovem os “Estados não ordinários de consciência” que essas viagens psiconáuticas são sagradas e não podem ser encaradas como “entretenimento”. Qual seria o limite ou o parâmetro para uma pessoa avaliar a qualidade do uso que faz dessas substâncias. A seu ver, qual o limiar entre o uso para o mergulho rumo ao autoconhecimento e o uso para a banalização do que é sagrado?

Acredito que esse limite é algo individual, no entanto a exposição constante às experiências de ENOC - tornando-as algo triviais - pode fazer com que seu impacto em nossa existência torne-se também banal. Para mim uma experiência a cada ano já é mais do que suficiente, mas já fiquei mais de 2 anos sem nenhuma ENOC induzida, e tive 3 experiências em um ano. Penso que o impacto cognitivo – espiritual e em nosso sistema de valores de uma experiência como a que relatei nessa entrevista é imenso,  por isso carece de tempo para ser refletido, maturado, impregnado em nossa construção individual como ser integral. Mas essa é apenas a minha visão e respeito outras posturas, apesar de não adotá-las.

9- Gostaria de saber como essa experiência impacta e transforma sua arte e sua vida?

Cada experiência abre canais diferentes na essência de meu ser. A princípio seus efeitos diretos em meu caminho transcendente não são objetivamente percebidos, existe um processo de decantação, um “Solve et Coagula” que demanda algum tempo pós experiência para chegar ao seu cerne. As criações artísticas baseadas na experiências dão continuidade a ela, funcionam como ritos posteriores para auxiliar-me em sua compreensão e fixação em meu self profundo. Nesse caso a arte funciona como cura interior aliada aos ENOC.

10- Qual a mensagem principal que essa experiência lhe trouxe?

Muitas mensagens estão emergindo, até agora a mais pregnante é a da morte como processo belo e necessário para o que entendo como existência. A morte não como oposto da vida, mas como seu complemento glorioso e mágico.

11- O nascimento do Ciberpajé se deu após uma experiência psicodélica em 2011 onde houve uma crise interna emergindo um novo ser com novos valores e metas. Quem é o Ciberpajé hoje, sobretudo depois de todas as experiências vivenciadas ao longo desses anos?

Na verdade essa experiência de 2011 eu considero o final de um ciclo que aconteceu durante toda minha existência e envolveu criação artística ritualística e magia como caminho para a autotransformação. Em 2011 com o cubensis ocorreu o ponto Ômega dessa trajetória que culminou em minha transmutação em Ciberpajé. Continuo um ser humano repleto de idiossincrasias, paradoxos e cometendo novos erros – nunca erros já cometidos, mas percebo claramente que aprendi a perdoar-me integralmente e também a todos que amo, e sigo na árdua tarefa de amar incondicionalmente nossa controversa espécie humana, em toda a sua complexidade. Também reconectar-me integralmente à minha natureza selvagem animal e cosmonatural. Não possuo verdades, não sou preso a dogmas ou crenças. Considero-me um mutante incondicional, pronto a mudar de visão, de forma e de percepção. Sobretudo amo a vida e a surpreendente experiência de fruir o agora. Estar vivo é glorioso, estupendo, mágico!

Ciberpajé, que entrevista linda! Agradeço a honra e a oportunidade sempre valiosa de poder te entrevistar. Essas conversas me ajudam a refletir sobre minha própria vida, além de instigar-me a provar de uma experiência visionária! Grata por ser parte do seu mundo e da Aurora Pós-Humana, a quem levo as boas novas nos lugares que vou, tendo-a gravada em meu próprio nome! IV Sacerdotisa Danielle Barros

IV Sacerdotisa, eu sou imensamente grato por seu interesse constantemente renovado por minhas obras, pesquisas e ideário. Considero essa série de entrevistas sobre minhas experiências com ENOC um testemunho importante de minhas vivências como artista-pesquisador e ser humano, assim como uma forma de aprofundar-me no sentido essencial de cada viagem psiconáutica.

Aos interessados em conhecer mais sobre as obras e o ideário do Ciberpajé sugiro a leitura do Vol.7 N.15 da Revista acadêmica Cadernos Zygmunt Bauman (UFMA), totalmente dedicado ao "DOSSIÊ CIBERPAJÉ; arte, vida e transmídia", que reuniu dez pesquisadores de oito universidades brasileiras e uma estrangeira com artigos inéditos tratando de múltiplos aspectos das criações artísticas do Ciberpajé (Edgar Franco) e de sua atuação como artista-pesquisador. O dossiê, de mais de 200 páginas, é um testemunho do caráter interdisciplinar da obra do Ciberpajé, compreendendo artigos redigidos por pesquisadores doutores e doutorandos das áreas de história, comunicação, educação, design digital, educação & saúde, música, artes e filosofia. Leia o dossiê clicando na imagem abaixo.


Capa do "DOSSIÊ CIBERPAJÉ; arte, vida e transmídia". Ciberpajé fotografado por Daniel Rizoto.  

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