quinta-feira, 15 de julho de 2021

[Resenha] HQ & EP Musical "Conversas de Belzebu com Seu Pai Morto": nós já vivemos em um ocaso pós-humano! Por IV Sacerdotisa

 

Arte do Ciberpajé

Depois de "lerouvir" ou "ouviler" o lançamento duplo (HQ + EP) mais recente do Ciberpajé, é preciso dar um tempo para digerir a mensagem da obra. De qualquer forma ouso tecer alguns comentários logo após vivenciar essa experiência.

Contracapa da revista Atomic Magazine #1 com arte do Ciberpajé baseada no capítulo 1 da HQ "Conversas de Belzebu com seu pai morto, publicada neste número. Adquira a revista neste link

Primeiro, para contextualizar, “Conversas de Belzebu com seu pai morto” é uma obra transmídia que se passa na Aurora Pós-Humana em um período denominado “Ocaso Pós-humanista”, uma das eras do multiverso ficcional criado pelo Edgar Franco (a.k.a. Ciberpajé). Sobre o EP musical com 4 faixas e a HQ de 11 páginas, ele diz que trata-se de: “um monólogo de Belzebu com o cadáver de seu pai enforcado em uma árvore. O pai é, simbolicamente, a espécie humana que se autodestruiu” (...) a obra “surgiu inicialmente do desejo de inserir de forma simbólica e iconográfica o arcano XV do Tarô, o diabo, no contexto do universo ficcional transmídia da “Aurora Pós-humana”. Na narrativa, após o fim da espécie humana, essa criatura nasce de forma metafórica e onírica no crepúsculo pós-humano, em um planeta Terra desolado. (...) em um monólogo – com seu pai morto, metáfora da humanidade.

Ou seja, a narrativa traz esse pano de fundo, um planeta dizimado, com a humanidade extinta. A humanidade é o pai desse demônio Belzebu. Cada fala é carregada de forte simbolismo, e quando lemos/ouvimos temos a estranha sensação de dejavú, como se compreendêssemos que esse é um possível futuro que nos aguarda caso a espécie humana continue sua saga hiperconsumista e gananciosa, que degrada tudo e todos.

O demônio é um “fruto-filho” que nasce dessa longa gestação (período da ação antropogênica no planeta), como demonstrado na HQ, aqui o mito da criação não surge da complementação entre opostos (masculino e feminino), mas da “fricção alucinada dos falos-mísseis”, cristalizado na energia-egrégora da guerra, opressão, poder e dominação.

O filho demônio nasce órfão, e sua existência só se concretiza com o perecer do seu pai, humanidade. Belzebu é solitário, pois desfruta da herança do desolamento, do nada, da inércia, da brisa nuclear, da terra estéril. Um silêncio gritante, que denuncia o genocídio que a humanidade decretou, executou e condenou a todas as espécies, reinos, domínios, classes, filos, a elementos bióticos e abióticos. Como o Ciberpajé pontua, a HQ e o EP são obras independentes, porém, uma vez "lendoouvindo-os", é difícil não concebê-los de forma inseparável e osmótica.

Capa do EP com 4 músicas criado pela parceria do Ciberpajé com o musicista Alan Flexa. Ouça-o na íntegra neste link

Uma das influências marcantes no processo criativo foi reverenciar as conversas filosóficas e metafísicas que o Ciberpajé tinha com seu pai Dimas Franco, e como o Sr. Dimas dizia, embora se assombrasse com a incrível capacidade humana de amar incondicionalmente, na mesma medida, temia até onde o egoísmo humano poderia levar a todos. Percepção sábia de alguém que tinha plena consciência de que o tamanho da nossa luz é também, o tamanho da nossa sombra.

Interessante a representação da morte da humanidade, um enforcamento, o que denota o aspecto destrutivo e suicida da nossa espécie. A morte abordada aqui não é apenas a “física”, mas a morte dos ideais. Quando Belzebu fala “quando seu ímpeto desbravador e sonhador terminou...”, mostra o fim da pureza, da luz, dos sonhos e realizações. Em seguida, a pulsão egoísta levou a humanidade a se desconectar gradativamente da sua própria natureza, das outras espécies e da natureza ao redor. Perdendo assim, o contato cósmico com a mãe criadora, nutridora, Gaia. Assim começou o fim.

A humanidade passou a cultuar outros deuses: dinheiro, ganância, extremismo religioso, poder, guerras, etc. A existência barulhenta da humanidade foi sendo paradoxalmente transformada em um mundo silencioso: com o calar dos pássaros, das abelhas, das espécies em extinção, com o fim dos gemidos de outros humanos que pereceram de fome e dor, em absurda e brutal desigualdade.

Entre as belas passagens de transformações e estagnações, a brisa nuclear decreta: “tudo é perfeito”. O odor putrefato mantém Belzebu focado, talvez para lembrar-lhe sempre (ao estilo “memento mori” ou o “nunca mais”, do corvo de Poe), em como NÃO SER. Já que esse pai, humanidade, não é um exemplo a seguir.

Ao nascer, Belzebu conheceu a melhor amiga do seu pai, a morte, a ceifadora. Na obra, a figura da morte aparece como benevolente, afinal, a ceifadora surge como uma possibilidade de fim, e só a partir do fim, algo pode vir a nascer, um recomeço.

E através desse novo mundo inóspito, o filho chama o pai para uma conversa, sem culpa, sem amor, para refletir sobre a única coisa que há, o nada. A morte, ao sair de cena, abre caminho para o ovo da criação, a vida. A esperança que surge do Nada. Enfatizando assim, o caráter cíclico da Existência.

De fato, a obra nos brinda com uma sensação de presenciar as conversas do Ciberpajé com Sr. Dimas, mas não transpondo o pai Dimas na humanidade e o Ciberpajé no Belzebu, e sim como uma representação filosófica do teor de algumas das intermináveis conversas que "EdgarDimas" tinham. Sim, interminável foi um termo que me veio para me referir às conversas entre eles e foi adequado, porque mesmo que Sr. Dimas não esteja mais nesse plano, Edgar genialmente encontrou uma forma de continuar essas conversas através de sua arte intermundos.

E nós continuamos sendo agraciados pelos frutos que essa amizade eterna nos proporciona.

A obra também pode ser aplicada ao agora. Ao vislumbramos a vida na perspectiva de não haver passado-presente-futuro, e que no agora vivenciamos de tudo, penso que em alguma medida, já vivemos em um ocaso pós-humano.

Com o passar do caos da pandemia, no mesmo silêncio gritante que Belzebu presenciou (o silêncio que denuncia o genocídio), aqueles que tiverem sobrevivido à pandemia vão refletir sobre o ocaso que ficou. Com uma nova chance de vida, um alívio, mas sem poder sorrir sinceramente, choraremos ainda mais as dores das perdas de vidas tão preciosas e especiais, as quais muitas delas se foram sem sequer passar pelo ritual do luto.

Choraremos a dor de constatarmos que essas vidas se esvaíam enquanto o poder desnegociava vacina, buscava propina em meio aos mortos, sorria e imitava pessoas agonizando com falta de ar, providenciando sacos pretos ao invés de respiradores e uma chance de vida. Impunes. A geração que ficar fará o papel do Belzebu, buscando encontrar sentido nos escombros e em buscar uma nova vida sem nunca se esquecer da lição cruel que o “pai” pandêmico nos deixou.

Aproveito para deixar minha solidariedade a todos que perderam pessoas amadas pela COVID19, sei que está completando quase um ano da passagem do Sr. Dimas. Que haja conforto e luminosidade nos corações de todas as famílias, que a justiça terrena seja feita e uma nova fase no planeta se faça.

Por fim, mencionar que trata-se de uma obra que pode ser "lidaouvida" de forma independente, mas como fiquei sabendo que virão novos capítulos, aguardo com curiosidade a continuação.

A mixagem e audição do EP foi extremamente intensa, com efeitos sonoros que nos conduzem a um outro tempo-lugar, ambientando perfeitamente a leitura da HQ. A HQ, por sua vez, com uma beleza visual incrível, com a estética das redes neurais que trazem arquétipos ancestrais e o simbolismo da conexão com tudo, na mescla de elementos e seres que compõem os desenhos, articulando ainda fotografia, ilustração, quadrinhos, inteligência artificial e tecnognose.

A IV Sacerdotisa Danielle Barros e o Ciberpajé em arte criada por Edgar Franco a partir de foto no evento de quadrinhos Entre Aspas, Leopoldina, 2017

Parabenizo imensamente ao Ciberpajé e ao musicista Alan Flexa por mais essa criação, literalmente transmidiática, articulando o universo musical do Posthuman Tantra e artes visuais nos quadrinhos poético-filosóficos, proporcionando ao leitor o contato com uma criação completa, singular e profunda.

Adquira a revista Atomic Magazine #1 neste link, e ouça o EP na íntegra neste link.

* A IV Sacerdotisa é Danielle Barros, arte cientista e professora doutora na UFSB

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