terça-feira, 21 de junho de 2022

[Resenha] Álbum em quadrinhos Licanarquia: um bravo brado retumbante e insurgente sobre o que nos separa cada vez mais da vida. Por Fredé CF

Fredé CF com seu exemplar de Licanarquia em mãos

Após um tempo de espera, que foi prolongado por intempéries e imprevistos ligados à dificuldade de produzir arte independente em um país que boicota estruturalmente (direta ou indiretamente) qualquer tentava de criação e difusão de obras autênticas, me chegou um pacote da Atomic Editora, confira o meu unboxing do pacote neste link.

Meus olhos brilharam, meu coração disparou e corri pra abrir a encomenda. Me deparei com um material incrível! Uma produção gráfica belíssima, caprichada e bem recheada de obras sensacionais, entre elas: a) uma edição impressa de “Licanarquia”; b) um livretoZine de HQforismos Mágickos do Ciberpajé intitulado “Uivos do Lobo Selvagem”; c) um outro livretoZine chamado “Criando Licanarquia”, que traz entrevistas com Toninho Lima e com o Ciberpajé sobre seus processos criativos da obra em questão, além de um texto que tece um panorama sobre a Aurora Pós-Humana e a deslumbrante FotoHQ “Naturae (capítulo 1 - O sonho dos deuses)”, feita com esculturas pelo Ciberpajé; d) um zine dobrável de HQforismos chamado de “Uivo” nº4; e) um marcador de página; f) um postal; g) um adesivo e; h) dois posters alucinantes.

Extasiado com tantos materiais incríveis de qualidade impecável, comecei a mergulhar na obra que une terror e ficção científica de maneira visceral.
 
Após ler e me admirar com os encartes que vieram anexos, adentrei a fruição da edição impressa de “Licanarquia”, que já na capa estampa uma bela arte de Toninho Lima colorizado em tons de azul, dourado e lilás por Edgar Franco com a utilização de experimentações psicodélicas com redes neurais, transcendendo, expandindo, transmutando e transportando a representação clássica do Lobisomem ao universo ficcional da Aurora Pós-Humana do Ciberpajé.

Antes do início do primeiro ato/capítulo intitulado “Fome”, há desenhos e rascunhos sombrios em preto e branco, negativos e positivos, expondo uma dualidade perspectívica angustiante intrínseca ao processo criativo exposto, o que me gerou certo suspense sobre o que iria enfrentar. As artes dos inícios dos capítulos são espelhamentos inquietantes, como um teste de Rorschach que você deve se submeter antes de adentrar aos meandros do que virá transformar sua mente. O olhar para si no espelho sombrio da humanidade. 

O tratamento das artes do Ciberpajé com redes neurais imputa uma psicodelia em preto e branco nessas aberturas de capítulos, o que, como um arauto do caos, nos convida a adentrar pelas texturas e camadas de seu universo ficcional.

O trabalho de contrastes, de luz e sombra, a mise-en-page, os enquadramentos, diagramação, o ritmo narrativo, expressões e onomatopeias nos fisga, pela imaginação articulada entre as sarjetas, para dentro do terreno inóspito e sombrio da narrativa. As entranhas da obra se expõem de maneira chocante já nas sequências iniciais, na ação das caças frenéticas narradas imageticamente pelo primeiro capítulo. A lua está cheia. Escancarada. Escarrada. O tom está dado. O ambiente adentrado. Não há mais volta. Fugir é pior. É impossível fugir de si mesmo. Só nos resta apreciar o inebriante instante fragmentado no breu iluminado pelo reflexo da luz que flui em refluxo pela lua e ascende o sangue jorrado de carniceiros cadáveres. Os limites entre a vida e a morte são glorificados e exaltados pelo expurgante uivo licanárquico.
 
“Quando o lobo uiva, não existe mais lobo, só o uivo”. Perseguição ou proteção? Deslocamento de expectativas, problemas de si mesmo lançados ao outro. Abdicação do poder de ser pleno, transferindo-o sob forma de aceitação ao outro. O outro não é o si. O que o outro vê não condiz com você. A culpa, o medo, a fúria, a hipocrisia e o ressentimento recalcado de uma sociedade fundada por padrões estéticos e morais que ignora suas sombras.
 
Dilaceramentos ciborgues surgem em uma tentativa de combater o domínio seco do binarismo tecnocrata. Binarismo esse provocado por si mesmo. Auto-sabotagem! Necessidade de adequação a ideais de luxo e felicidade fomentados pelo que há de mais bizarro e destrutivo. A repugnância servil de integrar uma sociedade hipercapitalista que se funda pela extração de recursos e geração de lixo e dejetos. Cada vez mais se tornam diluídas as fronteiras entre o carbono e o silício, o instintivo animal, visceral, natural, ancestral e os distúrbios de recalques e ressentimentos coletivos fomentados pelo medo de dar vazão aos sentimentos e emoções que nos caracterizam enquanto bicho. Vergonha. A vergonha deslocada pela moral. Cadáveres urbanos. Humanos. Vampiros socioambientais. Múmias e zumbis que decretam guerras com discursos sobre a paz. A única saída talvez seja o retorno ao ancestral. Animal.
 
Aos mistérios indecifráveis do Lobo, que indicam um mergulho no abismo desconfortante da alma, na loucura de querer viver o agora, dissociado de significações vazias impostas por vermes e fatos desfactualizados que não condizem com a essência do existir, do fruir, do integrar-se enquanto cosmos em uma completude que reside nas nuances de sua liberdade consigo mesmo.
 


O lobo torna-se enfim, contra tudo e contra todos, ele mesmo o que sempre foi, é e será. O Lobo! Desinstitucionalizado. Imprevisto. Impregnado de vida e cosmos. Em silêncio, suas garras e presas canídeas penetram a jugular da humanidade e incorporam a alma de Gaia, se hibridizando com aquilo que destoa dos padrões normativos e alienantes do mundo distópico social. Muito além do humano. Muito além da utopia. Muito além da vida. Muito além até da loucura. Nos cantos encantados, nas intersecções entre o tudo e o nada, reside a essência e o brilho do fogo reluzente do olhar ao luar, que guia o sonho do Lobo que um dia, fora de si mesmo, tentou ser homem. Pelo fogo se assistirá a derrocada da covardia humana em insistir em extinguir a vida cósmica em favor da morte técnica, pregada como “desenvolvimento” associado ao capital. O desamor da desconexão consigo mesmo. A eterna luta humana contra aquilo que se é.
 
“Licanarquia” surge como um bálsamo, um oásis, um alento, um lamento ou melhor dizendo, como um bravo brado retumbante e insurgente sobre o que nos separa cada vez mais da vida. Um rosnar sobre aquilo que nos aparta da essência animal, desconectando-nos de Gaia e tornando-nos carcinomas psicóticos que se espalham pelo planeta por projéteis mercadológicos seduzidos pela ganância de destruição em função de uma ideia torpe de progresso.
 
“Licanarquia” alerta à destruição de nós mesmos em função de um sistema sem vida. Uma autoaniquilação. Um suicidio coletivo que configura-se como cerne horrorífico da narrativa da obra. A saída é o mergulho solitário nas próprias sombras, assumindo-se como animal que, mesmo negando, ainda somos.
 
A obra me fez pensar bastante sobre transformações, movimentos, metamorfoses…mas não pra fora, pra dentro! A maior forma de fruir a vida pelo amor próprio de se tornar o que se é/está no agora, a única coisa que existe. O metAMORfosear por dentro. Os universos interiores que transbordam no que nos cerca. O sair da ilha pra poder ver a ilha, mas sair pra dentro, já que a ilha é de dentro pra fora. A exaltação da subjetividade, do amor próprio e da ciência de nada ser para então ser tudo. Deslocar-se daquilo que nos desloca de nós mesmos.
 
O monstro Lobisomem chama a atenção para olhar as sombras e a importância de compreender-nos como seres indecifráveis, indefiníveis, incontroláveis, permeados por nuances infindáveis de emoções e sensações que escapam de padrões impostos pela razão. Não seria essa a beleza da vida? As incoerências, as discordâncias, as “imperfeições” diante daquilo que tenta nos estabelecer e determinar como “perfeitos”. O que é ser perfeito? Perfeito pra quem? Perfeitos pra quê? Não somos produtos, absolutos, determinados. O que torna a existência mais deslumbrante é a diferença, a alquimia, a subjetividade, a unicidade, a magia de ser raro diante do tudo e, enfim, do nada ser. O mo(n)strar-se sincero, essencial. Essa raridade cósmica é deslumbrante e, ao mesmo tempo, reveladora sobre nossa insignificância frente a imensidão da existência infinita dos universos (internos e externos a cada um de nós). Somos instantes. Nós. A serem desatados. Passamos. Constantemente. Inexoravelmente. Por isso a importância de curtir essas passagens. A arte possibilita que essas passagens sejam mais sublimes e permeadas por transcendências dimensionais, como em “Licanarquia”.
 
A obra urge pela importante ideia de integrar-se ao planeta por inteiro (corpo, mente e espírito) como forma crucial, iconoclasta e visceral de combater e se desprender, no presente, das expectativas criadas, das (des)esperanças e, sobretudo, do doloroso horror do que se tornou ser humano.


*Fredé CF (a.k.a. Frederico Carvalho Felipe) é artista transmídia, criador do universo ficcional MekHanTropia, pesquisador, professor e doutorando no Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da UFG, em Goiânia.

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