Em julho de 2020 conheci o trabalho do Ciberpajé (Edgar Franco) através de um single da banda Tuatha de Danann, “The Molly Maguires”, do qual ele foi o capista, e foi quando decidi comprar as suas revistas em quadrinhos Artlectos e Pós-Humanos, diretamente com a editora Marca de Fantasia. Quando elas chegaram eu não sabia nem por onde começar: era um trabalho tão intenso que percebi que se lesse tudo de uma vez com certeza teria uma “overdose” filosófica e artística. Então fui lendo aos poucos e anotando as minhas impressões, que agora estão reunidas nessa resenha.
São 13 números no total, que aliás é o número do dia que nasci, e sendo o 13 um belo número de transgressão da ordem pré estabelecida, acho que essa é a melhor explicação para toda essa obra que te tira do eixo e te faz pensar. A perfeição do 3 com suas forças ativas, passivas e harmônicas e o impulso gerador do 1 com sua capacidade de gerar novos começos! Bela metáfora para muito do que senti ao lê-las.
Esta também é uma obra que se não a levarmos para o pessoal, para a nossa vida mesmo, acho que desperdiçaremos muito do seu potencial transformador. Por isso, espero que muitos mais decidam fazer essa viagem completa porque ela é mágica e cheia de possibilidades para quem decidir viver a arte intensamente, nas veias, sentindo amor e ódio mesmo, porque eu acredito que somente assim ela cumprirá seu verdadeiro papel de transformadora cósmica!
E falando em Cosmos, nomeei cada um dos números da Artlectos e Pós-humanos com algo que está acima das nossas cabeças, no céu da nossa existência, afinal, essa foi uma viagem intergaláctica pela galáxia dos meus sentimentos e pensamentos. Lá pelo fim vocês vão entender porque comecei pela número#2.
#2 Vênus
As ilustrações e os quadrinhos são extremamente fortes, assim como os temas, que também são necessários. Afinal falar de certos assuntos sem causar um certo choque é como não falar deles!
A imagem que mais me chamou atenção na primeira história em quadrinhos, "Parto," foi o parto com a união do masculino e feminino e o símbolo do ankh, o símbolo da vida. O nascimento em úteros artificiais, que geram humanos desprovidos de uma real alegria. A espontaneidade de um parto onde há a expulsão natural do feto pelo ciclo natural da vida talvez seja realmente a responsável pela espontaneidade de nós, humanos.
A segunda história, "Pesadelo Pós-humano", trouxe-me algo muito hipnótico, além de uma certa inocência ao lidar com os pesadelos. O que cada um teme, aquilo que mais nos apavora é diferente para cada ser humano e as representações ali tinham um toque de pavor unido a algo que acolhia. Acho que o que é mais assustador beira esse acolhimento inicial para depois surpreender como terror seguinte.
Na terceira história, "Fuzono", o peixe me parece muito sereno no meio de toda mutação. Embora o peixe seja um símbolo daquilo que continua, que é perene e próspero, ali ele parecia figurar com uma certa paciência e serenidade de saber para onde se vai.
A quarta história, "Estranhas Entranhas", traz um conceito interessante: a individuação do prazer. Fico aqui pensando o que seria isso. Individuar-se, separar-se para unir-se ao que de fato representa você. No caso, será que o prazer se separa de uma determinada condição social e se une a um prazer interno, intenso e completo da sua alma com nosso Eu? Uma das ilustrações traz o exato conceito que existe em um dos contos que eu escrevi, onde o homem por conhecer sua contraparte consegue ultrapassá-la e atingir o prazer em um terceiro corpo. Então essa sincronicidade me soou incrível!
A ilustração que mais me chamou atenção na quinta história, brinGuedoTeCA, foi do “pequenino” profanando a mãe, além da imagem dos mais velhos. Uma crueldade feita, me parece, contra si mesmo.
Bem, a arte é para isso não é? Para despertar impressões, sensações e também trazer aquilo que o apreciador tem dentro de si e por enquanto, esse aí é o meu conteúdo interno aparecendo.
#3 Terra
A primeira história, "Redesign", traz um conteúdo denso de algo que é natural e forte na mesma proporção. Como se fala e se inventam inúmeras linhas de pensamento sobre os ciclos da mulher, várias vertentes que defendem um afastamento, que julgam, que colocam regras e mais regras em algo que por ser natural deveria ser simples. Sei que ali são pós-humanos mas traz algo de muito humano: uma vergonha de ser aquilo que se é e viver tudo o que te faz único em completude.
Após a segunda história, "Tecnognose 2.0", temos a HQ "Gênesis Revisto" e nela começa uma das coisas que adoro: o espelhamento das ilustrações feito pelo Ciberpajé! Nossa, isso me traz algo não inteiro ainda, mas ao mesmo tempo algo “ao quadrado”, cheio de potencialidades! E vi finalmente a ilustração da criatura com 9 falos e uma vagina na testa: a completude, pelo menos foi essa a sensação.
Após a HQ de uma página "Arbítrio", temos a quinta história, "Ninfa 2.0", onde volta o tema do feminino e de um certo sofrimento. Aquilo que sangra é também aquilo que se sacrifica e mostra o líquido da vida, as vezes já sem ela, morto. Acho que nessa precisarei de maiores reflexões para compreender o que se quis dizer com a frase “Só não sangra pelos sonhos.”.
Na sexta HQ que fecha a edição, "Oração do Transbiomorfo", em minha humilde interpretação, aparece a incitável dúvida/luta do ser humano contra sua finitude e também para saber o seu propósito! Aguçou-me muito a curiosidade sobre as letras desenhadas na página 21! (n.e: Alfabeto magísticko do Ciberpajé). Belíssima ilustração das crucificações em várias dimensões, na luz e na sombra da alma divina! E por fim, o dragão é um símbolo muito forte para mim, fala da minha luz e da minha sombra, é como realmente não saber o que tem no ovo, pois o que virá dali é novo e o desconhecido nos apavora, pois não temos fé nem confiança suficientes no universo. Essa na verdade é a luta de uma vida!
#4 Marte
Não sei ao certo quanto tempo o autor levou de uma HQ para outra, mas vou percebendo as transformações, talvez pessoais do criador Ciberpajé, que levam para uma mudança na forma de apresentar as questões.
A história “Híbrido Ícaro” traz os padrões aos quais a maioria de nós estamos sujeitos na vida. Achei esse “Cavalo Marinho Ganesha” um belo conselheiro! Esse mergulho profundo no ser, essa capacidade de entrega à Si Mesmo, corajosa a princípio pelo ver e depois pelo agir. É como dizem, nas profundezas de uma terra-alma está tudo que há de bom e de ruim, mas tudo é nosso, de nosso ser integral!
A “Neomaso Prometeu” começou com uma expressão de minha parte: - NOSSA! Trouxe-me uma sensação bem complexa: essa alegria falsa, exposta, capaz de nos enganar por muito tempo de que as questões mundanas, monetárias serão suficientes para viver em prazer eterno. Um eterno despedaçar do externo. Isso trouxe muito a profanação diária que fazemos de nós mesmos, até mesmo quando usamos as redes sociais para afirmar algum padrão que nem nos corresponde mais. E o vazio da Essência! Todos nós temos essa essência mas é triste e desesperador quando não conseguimos alcançá-la. Como dizia um aforismo de Gurdjieff: “Feliz quem tem uma alma, feliz quem não a tem; Infelicidade e sofrimento para quem só tem a semente dela”.
A HQ “A Caverna”, parceria do Ciberpajé com o roteirista Gian Danton, faz uma releitura do mito da caverna de Platão, e é sensacional. Usei essas imagens no mesmo dia que a li com uma paciente. O amor às nossas correntes, aos nossos medos. O desabrochar para as novas possibilidades, a abertura do olhar. Mas a imagem do que chamo de “Centauro Alado” é linda demais. Quanta liberdade e não há mãos para tocar, apenas asas para pairar. A serpente umbilical traz uma sensação de eterna ligação com a fonte universal. Quem experimenta a libertação não consegue mesmo se contentar humildemente com a prisão. E mesmo que se arrisque tudo, é preciso expressar. Talvez aí estejam tantos pontos complicados de quem está desperto em um mundo de sonâmbulos. No final, sempre retornam as correntes, pois ali é seguro.
O “Ideal Transumano” me trouxe na figura do Sacerdote algo interessante: os peixes voadores, uma infinidade de possibilidades sendo pescadas para usufruto de um propósito. Fiquei pensando se quando usamos algo magnífico assim para fins egoístas muito do magnânimo não se esvai. Quando algo assim deixa de servir o coletivo, passa a ser comum e perde a sua magia.
No “Dilema de Despedida”, o tema da morte foi bem tocante neste momento que o li. Não temos como saber quando a Linda Donzela Cruel virá até nós nem o quanto seremos egoístas quando ela chegar. Quem toca em sua mão e caminha na doce e fria estrada com coragem talvez não queira mesmo mais ficar aqui. Mas acredito que a morte não traga pensamentos egoístas como esse e sim, traga algo muito maior, que preenche os espaços vazios entre o momento e a saudade.
A última imagem do “Louvor aos Biociberxamãs” remeteu-me à imutável árvore da vida, capaz de estar imóvel esperando a nossa passagem por ela. Ela ficaria ali parada e sintetizaríamos tudo ao seu redor. Mas ela ainda é ela e sua imutabilidade só me traz uma sensação de sempre ter estado conectada com sua verdadeira missão, enquanto nós procuramos a nossa durante toda a existência.
#5 Júpiter
As cores do verso da capa me chamaram muita atenção. Uma tristeza azul, talvez do racionalismo exacerbado, muito valorizado.
Na história “BioSimCa” foi interessantíssimo ver aquele que busca seus pares, os que sentem a sua dor. A dor de cada um é infinita na sua razão e a forma como lidamos com a nossa diversidade, a da natureza humana, foi colocada ali de uma maneira inteligente. Uma evolução da consciência experimentando viver outras vidas! Enquanto que nós humanos ainda precisamos usar uma ferramenta, esquecida ou muitas vezes considerada obsoleta, a empatia.
Na história “Finalmeme” parecia que todos os desenhos se interconectavam, embora separados. A rigidez do falo cartesiano, que não faz justiça à rigidez firme de um falo e sim, a uma imobilidade sem volta. Os espíritos animais das imagens me trouxeram sentimentos e palavras como: carinho, compaixão, serenidade, objetivo e magia. Mas a imagem dos “Dragumanos Serenos” foi a que mais gostei, talvez por representar a serenidade que preciso neste instante. Viver nesse mundo caótico torna mesmo essa serenidade um valor inestimável.
Na historia do “Meme da Misantropia” o que me veio a mente foi justamente tantos processos evolutivos pelos quais os seres humanos se submetem e que no fundo acabam cada vez mais se perdendo em um emaranhado pomposo de conquistas inúteis. Às vezes são tantos processos que nos afastam daquilo que somos na naturalidade. Enquanto isso, o olhar para aquilo que “esta dentro como aquilo que esta fora” acaba sendo muitas vezes o único fio condutor seguro o suficiente para que possamos passar por esse labirinto que se chama existência e cumprir nosso papel.
Já no inicio da HQ “Psicohipertecnoarte” pensei: ai vem coisa, fácil demais! Transformar os traumas assim, com uma remodelagem encefálica. Quando os sentimentos profundos que sobravam disso apareciam nas formas de suas cabeças, na verdade me trouxeram muito do que realmente fazemos: imaginamos que estamos conseguindo lidar com nossas questões enquanto as mesmas estão ali, estampadas nas nossas faces, para quem quiser apreciar (menos nós mesmos). Achei extremamente sagaz essas artes! Deixá-las na sala de espera de um consultório psicoterapêutico seria interessante e talvez ajudasse a fazer com que as pessoas iniciassem ali mesmo suas viagens internas. Independente disso, pensei que seria necessário também coragem suficiente de apreciá-las como devem.
#6 Saturno
Que linda essa fênix de transmutação que consta na capa e contracapa do número 6! Já dá uma introdução da profundidade que virá.
A revista abre com a HQ “As Chaves da Transmutação” com os 10 HQforismos que conduziram o processo de transformação de Edgar Franco no Ciberpajé. Falarei desses chaves a partir do meu olhar: o Sereno é um constante desvio de um Ego cheio de vida, pronto para se colocar como escudo que protege e que impede que a beleza da vida penetre. Como é difícil ser assim! Não sei se a dificuldade é apenas minha, mas ser Sereno sempre exige um esforço homérico!
Viver o Momento é algo complexo e belo. Deixar-se segurar pelas mãos do presente, abraçá-lo, agarrá-lo com os braços e com as pernas, e Ser ele!
O Equilibrado é raro, mas sinto que cada vez mais vemos a necessidade da existência dele. Embora muitos não tenham força suficiente, pelo menos o conceito de equilíbrio está em voga e se visto com sinceridade pode promover uma vida com reais momentos de alegria.
A sinceridade machuca às vezes, mas lava a alma. Nem sempre é fácil ser Sincero, queremos agradar, ser agradados e isso gera um novelo infernal que foge do simples e nos enrola no emaranhado confuso e social.
Achei de uma beleza e de uma retidão o desenho do Delicado. E de uma humildade sem tamanho!
Creio que o Amoroso constante é muito difícil, digo para vivê-lo. A necessidade de um amor incondicional é real, mas sua execução acaba sendo utópica, porque é bem mais difícil amar do que odiar. Amar exige entrega ao objeto de amor, mas sem se esquecer de Si Mesmo.
O Selvagem é especial, a medida do equilíbrio dele que é difícil. Mas a intensidade aqui me chamou a atenção porque para ser plenamente intenso sem culpa é necessário um trabalho interior tremendo.
O Complementar me fez sentir uma passividade, aquela dos processos naturais que sabem esperar acontecer, na certeza de que sempre haverá uma outra parte que lhe caberá perfeitamente.
A Renovação traz a importância dos ciclos, de saber respeitá-los e de saber vivê-los, visceralmente, mas sem se apegar a eles ou a nada.
O Renascido parece ser a junção definitiva. Mas também temporária, porque a cada renovação, um novo ser renascerá. Nem se pode empenhar tanto tempo construindo uma única forma de ser, pois somos muito mutáveis. Hora trazemos o novo, hora voltamos ao que éramos, ora nem sabemos quem somos! É apenas um viver o ciclo e esperar, com alegria, o que virá.
Histórias que envolvem a figura mitológica da sereia, como “Ser(pente)ia”, são sempre mágicas porque pra mim ela é importante. Às vezes eu me vejo muito nesse Ego que suga as energias e ás vezes sou a fonte da energia sugada. Gostei muito do desenho da página 21, me pareceu muito refletivo, espelhado e complementar.
As ilustrações das borboletas em “Borbopoemas” são magníficas. Vi todas e depois voltei até elas para ler. A borboleta amarela que pousa na mão e leva-nos para sempre com ela é uma metáfora magnífica, cheia de sentido e significado. A cada processo de mudança, um lado nosso se vai completamente, vai complementar outro ser, outra situação, outro momento.
A prisão do passado, aquela que não permite que o agora seja pleno em sua simplicidade é cruel, mas a imagem da revoada de borboletas que salvam é magnífica porque as transformações nos fazem viver a cada momento algo novo, nos fazem ir modificando pouco a pouco, pelo amor ou pela dor, quase sempre pelos dois, nossa atual condição limitante.
#7 Urano
Embora todas as “Artlectos & Pós-humanos” tenham essa característica futurística, a capa da edição 7 me trouxe muito essa ideia, não sei se pelas cores verde e vermelho ou pela expressão desse “ser lobo”.
Na história do “Entropiano” senti essa perturbação humana de esperar a vida perfeita para que seja possível vivê-la em toda sua intensidade, quando na verdade eu creio que essa intensidade viva bem mais efetivamente naquilo que é a imperfeição, pois ali está tudo o que realmente o ser humano tem. Antes de conseguir viver a essência plena, perfeita, vamos vivendo suas beiradas, aquilo que a sustenta, que a aprisiona, que a mantém intacta e que de alguma forma também é o material do que é mais profundo em nós.
Na história "Das Fêmeas Cósmicas” há algumas facetas do feminino e a parte complementar do Macho que a busca, incessantemente, para se ver completo. E nisso senti também essa necessidade que essas facetas femininas têm de serem complementadas, por dentro e por fora pela imagem do “Macho Alfa”, dono de todo esse poder. Enquanto crermos que o poder é do outro, nunca teremos o suficiente. Enquanto crermos que o poder é apenas nosso, nunca estaremos completos. As disparidades poéticas da necessária completude!
Na história da “Ascensão” - parceria do Ciberpajé com Matheus Moura - o olho, essa visão, esse sentido que foca, que busca, parece ser o ponto principal de integração. A frase do “Dragão que persegue a Borboleta” é muitíssimo interessante, dois seres de transformação, um flamejante, outro mais rarefeito, uma mistura interessante e que ao mesmo tempo teve para mim algo de doloroso. Gostei muito da ilustração da página 25, esse aglomerado de formas me deu a sensação de “ter que aguentar o peso”.
Na história do “Integral”, o desenho da cabeça do ser da página 28 me lembrou um botão de flor, prestes a abrir. Então a imagem me trouxe uma sensação de expectativa da vida.
Fiquei por um tempo observando o desenho da última página, vi um rosto e depois tive que olhar novamente para enxergar um ser ali no meio. São traços mais delicados, parece que a folha de papel corre deles e ele vai atrás, buscando seu significado. Foi uma experiência interessante demais (n.e. Esse desenho foi criado durante uma experiência do Ciberpajé com o enteógeno Psilocybe cubensis).
#8 Netuno
A capa psicodélica mostra para que a revista nº 8 veio: cheia de parcerias interessantes, com sentimento, onde várias impressões se unem para algo INESPERADO.
Na história da “Gnosceteipsum!”, parceria do Ciberpajé com Elydio dos Santos Neto, há o tema do “quem eu sou”, um ser cansado das influências externas, que traz uma sensação de desespero, de precisar se esvaziar por estar cheio de algo que não lhe compete, como se tudo que entrasse nele não conseguisse se integrar com a sua verdadeira essência. Até que a profusão de possibilidades, que surge na imagem das Musas, aparece e a confusão externa se torna interna. Como acontece com o ser humano, que parece sempre muito incapaz se, em uma condição de confusão interna, se perde do seu caminho e flutua nos caminhos dos que pulam na sua frente. Quando tudo aquilo sai e é expulso, o interno se reflete no mundo externo e algo de quem se é aparece, embora a ilustração da águia pareça muito pesada e densa para permitir o caminhar suave de cada ser por sua própria vida.
Na HQ “(E)ternura”, é interessante observar três imagens diferentes do mesmo personagem, como uma condição que se modifica, rumo aquilo ao que é eternamente terno. No nosso mundo atual, ternura parece uma palavra estranha, estamos sempre tão agressivos diante da vida, para conquistar e ganhar espaço que esquecemos da importância de receber ou de proporcionar uma delicada ação vez por outra, que aconchega e acomete à uma desaceleração da rotina, fazendo outro ser lembrar-se da necessidade de agir ternamente também.
Na história “Seiva”, parceria do Ciberpajé com Gazy Andraus e Jorge Del Bianco, o sentido que me passou dessa palavra foi de líquido vital. O desejo que move é aquele que precisa de veias onde correr. O líquido vital possibilita que o desejo seja realizado, materializado. O nada gerador, aquele espaço que precisa existir para que algo novo possa acontecer, é tão importante quanto a liberdade de se fazer um sacrifício (impressão que me trouxe o desenho da página 21).
Na criação do HQforismo com a IV Sacerdotisa, aparece o tema da fêmea que complementa o macho e do macho que complementa a fêmea. O desenho que traz aspectos da sereia, que gesta uma nova possibilidade, capaz de trazer todo aspecto criativo, alimentado pelo novo que precisa ser retroalimentar por ciclos de existência. Trouxe uma impressão de magia e de finitude para um renascer e de uma ligação que parece que se acabar nessa existência, permanecerá em outra, em ciclos infinitos de conexão.
As últimas ilustrações me trouxeram algumas impressões, aparentemente soltas: excesso de alimento, a busca da segurança, queimar-se no que é magnífico, a abertura para a consciência, a confusão, a criatura primitiva assistida por ídolos em seu altar destruidor, o gotejar de ramificações interligadas dentro das capacidade corpóreas, a serenidade de um pensamento apoiado em algo que se sabe imutável.
Foi uma experiência muito interessante observar a quantidade de imagens que a princípio não parecem se interligar, mas que vão, de algum modo, se juntando, contando uma certa história. Talvez a intenção das substâncias que expandem a consciência seja abraçar tão apertado certos conceitos que é possível extrair deles algo inédito e que muito tempo depois ainda podem reverberar em outras pessoas, enquanto analisam o produto dessas experiências, como é o caso desta HQ.
#9 Plutão
A árvore da capa me trouxe a imagem da árvore do número anterior. Como se fosse preciso dar uma continuação a algo que se perde a cada dia: nossa natureza e o respeito por ela. As cores vão de uma tranquilidade azul para uma incandescência alaranjada. Como se da calma da paralisia precisasse surgir uma necessidade do avanço da ação.
Em “Ciberpatuá Quântico” existe uma temática muito complexa: a construção mental de narrativas. Ela pode fazer com que os seres se percam de seus propósitos, desviam a atenção para algo que vem do desejo, uma adoração sem sentido e sem limites a uma história feita de ilusões. Mas ao mesmo tempo, não seriamos humanos sem elas e a imensa dificuldade que nossa mente tem de se desconciliar dessas narrativas mostra como isso é naturalmente nosso, assim como nossas limitações.
No “Último Erro” o que vi ali foi a eliminação da dúvida. Cortar a cabeça, retirar da imortalidade pelo medo da traição é algo covarde. Pensei então: será que quando desacreditamos no outro de vez, pelos nossos traumas e delírios dolorosos do passado, acabamos então mostrando toda a nossa covardia frente ao desconhecido? Seria melhor cortar todas as plantas pela raiz por medo de que alguma delas cresça como erva daninha? Eu não acredito nisso mas também não nego o medo daquilo que não temos certeza.
Em “Gene Egoísta?” achei as ilustrações de uma beleza inacreditável, me trouxe a impressão de um traço contínuo e infinito para contar uma história que falava da finitude do ser humano. O Egoísmo me parece ser necessário em certos aspectos e temerário em outros, mas realmente ele é humano. O ser humano parece mesmo que não tem consciência de espécie como os demais animais mas sim possui uma consciência de Ego que se confunde de alguma forma com o coletivo. Acredito que isso é o que lhe dá uma falsa impressão de que ele está sim perpetuando a raça, de alguma forma.
Na história “Hierarquiadn”, senti muito a sensação do eterno controle e nada melhor para isso do que a hierarquia, uma bela forma de controle escalonado, muito prático. Uma única estrutura que a todos “estrutura” e que paralisa diante do desconhecido. E que tipo de evolução teríamos sem tocar no que é desconhecido, naquilo em que há Pânico, o medo do doce e feroz Pã?
Na história do “Cerrado Ser” olhei todas as imagens das árvores primeiro e depois fui ler o texto. Quase dá para sentir o silêncio da infinita saga desses seres extremamente vivos e sábios! A penetração da carne mostra uma conexão com a natureza, aquela que fazemos por último e que para muitos na verdade pode ser a primeira porque nunca antes buscaram se conectar com algo que não fosse a si mesmo. E estes, no seu doce engano, ao buscarem a si mesmos apenas em si, jamais se encontrarão, pois a alma do ser humano habita a alma do mundo.
As últimas imagens e textos são completos cada um em si (n.e. São todos HQforismos), mas o que mais me chamou atenção foi a frase “Sagrado é o ato, profano o fato de evitá-lo”. Quantos limites familiares, pessoais, sociais existem no caminho da nossa própria evolução cósmica? A ideia de Cosmos me parece uma imensa mistura que não tem fim, que não para de crescer e de expelir. Evitar isso é como evitar a própria vida, dessacralizando aquilo que de fato viemos fazer em Gaia.
#10 Meteoro
A capa e a contracapa são lindas, com esse olho no centro do peito: parece que enxerga com o coração, enquanto a visão ocular parece estar suspensa.
Na história “Gaiana” aparece o tema dos opostos complementares. Interessante o tema da opressão, tratando-se de opostos parece que sempre um deles vai estar oprimindo o outro. Mas fico aqui pensando na opressão cruel, que quer reduzir o outro ao nada ou usá-lo como escada para subir os degraus do Ego e na opressão que empurra para frete. Sempre uma dessas formas parece que vai ocorrer e talvez esse seja o verdadeiro equilíbrio. Com poderes tão intensos como “Agape e Thelema” acho difícil haver uma harmonia sem um balanceamento de forças tão poderosas e para que ocorra esse balanceamento, elas precisam estar ativas, em um embate equilibrado.
Em “Ousado Redesenho” achei interessante a imagem do seio, aquele que seduz para gerar uma vida e que a nutre posteriormente, observar os humanos em seu caminhar em união com um mundo artificial, mas que acaba sendo influenciado pela vontade, a grande dama da direção.
Em “Um Dia a Mais”, é interessante imaginar o que sairia da nossa clássica criação em 7 dias se ela mudasse. O 7 como número de um ciclo completo, sendo o 8 um número que sobe um nível na espiral da vida. A perfeição contida no 7 (sete notas musicais, sete cores do arco-íris, etc.) resulta no máximo dos humanos. Mas o movimento seguinte é embebido pelo sarcasmo, aquilo que é dito sem a pureza da inocência, como se fosse sujo demais para encostar naquilo que é a nossa essência. E assim, a ferida daquilo que é separado do todo só tenderá a aumentar em um próximo nível.
Na história “Em Louvor aos Pré-Humanos”, creio que o elemento fundamental que aparece é a natureza, que independe de uma visão religiosa ou biológica. A imagem do cogumelo que é consumido e que é capaz de alterar o estado de consciência faz com que o objeto das nossas ações ou dos nossos desejos “levite” pela nossa vontade, claro, se ele não estiver de alguma forma amarrado à nossa essência. Mas a nossa consciência expandida é capaz de elevar esses mesmos objetos junto com a capacidade de ser um observador da nossa própria vida. E apenas assim adquirimos a real consciência. Enxergo que os desenhos das páginas 24/25 trazem uma beleza da complexidade dessa consciência essencial.
No HQforismo da página 27, parceria do Ciberpajé com sua irmã Ariadne Franco, senti muita verdade no olhar intenso mas controlado desse ser-dragão. Sua língua tenta tatear ao redor, mas mostra como às vezes podemos não compreender que a experiência pode exigir um tempo muito maior para ser realmente com“provada”.
O HQforismo da página 28, parceria do Ciberpajé com a IV Sacerdotisa, em conjunto com o texto trouxe uma grande solidão, em primeiro lugar. A solidão incomoda quando não conseguimos nos achar dentro dela e muitas vezes isso acontece quando apenas conseguimos nos ver refletidos no outro.
No HQforismo da página 29, parceria do Ciberpajé com Graziely Abreu, senti uma beleza da mansidão de Gaia. Uma inércia pecaminosa, de uma dança que conduz o Cosmos para uma simbiose das curvas, onde entre elas está a nossa existência.
#11 Lua
O número 11 aparece cheio de parcerias interessantes, que contribuem para as ramificações floridas e frutíferas deste trabalho. A capa traz um perfil sério, que no pássaro aparece algo com um orgulho diante do que já foi aprendido.
Na história do “Falso Alfa”, o espelhamento das imagens e a visão das palavras da imagem invertida gera uma sensação de causa e consequência, principalmente na frase sobre o menino e o adulto, toda aquela simplicidade batendo em um escudo egoico rígido e até mesmo triste, que fede tanto quanto as roupas do rei. O mais simples, aquilo que é antes de tudo, tem a beleza do puro, do real. Sem a união cósmica realmente não pode haver a verdadeira paz em nossos corações, pois aproveitar os momentos, as pessoas, os instantes, cada coisa que nos é dada, seja boa ou ruim, é uma contribuição para essa penetração, essa integração entre princípios complementares.
Em “Linha”, a imagem toda me deu uma sensação de algo que procura sua continuidade. Mas a frase “Somos um momento de distração da mãe inexistência” é muito bela, pois nos faz querer aproveitar o hoje, o agora, o privilégio da vida, essa magia de respirar e poder fazer, poder ser, poder estar!
Em “Desvelar”, no início vi a vida do ser humano adulto antes de ele compreender que um dia morrerá. Esse momento da compreensão o faz querer resgatar essas chaves tão importantes, as que nos abrem os portais do universo, as maiores possibilidades evolutivas, de uma evolução que não dá para ir sozinho, mas apenas ir caminhando e levando consigo o máximo de seres que puderem evoluir com você. Somente assim o mistério será completo.
Já adorei o nome “A Serpente e o Monge Orgiástico”, um masculino se recriando, honrando seus lados mais luminosos e sombrios, seu sagrado feminino ancestral e com isso, num estado de serenidade do monge, poder se conectar e explodir em orgasmo, um tipo de explosão que a arte conduz com maestria, pois é quando o simples humano se integra com toda a vastidão do universo.
Em “Fótons do Desejo”, parceria do Ciberpajé com Gian Danton, Gazy Andraus e Matheus Moura, senti que o desejo que impulsiona é o mesmo que aprisiona, aquele que nos faz ter a capacidade de querer tanto que às vezes nem damos conta, mas se houver um contato com nossa essência real, o desejo será como uma ventania que acaricia o mais firme carvalho fincado na terra da plenitude eterna.
No desenho do HQforismo “A Lua Insinua Nua” senti o desejo violento do lobo, do nosso animal interior, aquele que existe em cada um e que nos impulsiona. A lua, em toda a sua beleza, acaba sendo apenas o reflexo externo daquilo que nos move.
O HQforismo da página 28 trouxe-me realmente uma energia fluída, me fez pensar do silêncio do ato sexual, aquele silêncio de palavras, onde os humanos apenas conseguem se tornar animais ofegantes, que não têm dúvida de como agir, o instinto coordenando como um sutil maestro a junção perfeita.
O HQforismo da página 29 trouxe a sensação de vazio, chamou a atenção para o externo. É como se olhássemos o cosmos interior, com sua imensidão tremenda, e não fosse possível o vermos, enquanto nossa concentração estiver apenas nos castelos que construímos para não enxergá-lo.
Esse número todo ficou muito integrado, talvez pela aleatoriedade com que foi feito com as escolhas de livros para inspirá-lo. Afinal, creio que sempre o fluxo do universo vai nos ajudar a chegar aonde precisamos.
#12 Estrela Cadente
A capa da número 12 me chamou muito a atenção porque tem espirais, lagartos, serpentes, raízes e polvo. Pelo menos foi isso que vi. Tudo isso me deu uma sensação de um olhar julgador, que pergunta o que estamos fazendo por nós mesmos, o que estamos fazendo para manter vivas as essências contínuas dos seres que rastejam e que vivem nas profundezas de nós? Me pareceu um convite para a reconexão interna, um olhar para nossos lados sombrios.
Em “Lar” senti o contraponto das asas e dos cascos como a necessidade de estar sempre entre o que é mais sublime e o que é mais grosseiro dentro de nós, ambos necessários para que haja um constante movimento, algo que nos faça vivos e isso indo contra a capacidade de estar completamente alheios a tudo, apenas na superfície, para parecermos “normais”.
Em “Lua”, antes de tentar compreender qualquer coisa, me veio uma certa tristeza, um descontentamento. Como se ao olharmos para a lua, ela que é a lâmpada da energia do sol, víssemos a magia, assim como da primeira vez que a população viu uma lâmpada acesa e acreditava que era mágica. Me deu uma sensação de ignorância.
Os traços dos HQforismos das páginas 8/9 trazem uma sensação de ligação e os olhos nos desenhos aparecem como a visão que é capaz de enxergar a dor do mundo. Quando os humanos estão alheios a essa dor, estão alheios a si mesmos, afinal do que a dor do mundo fala senão das nossas próprias tragédias? Se a tragédia do ambiente não for a nossa, então não fazemos parte dele, somos apenas seres alienados, que usamos como mercenários as dádivas da vida.
Em “TACG”, achei tão interessante a frase: “ousam como Eva”e fiquei pensando: será mesmo que Eva ousou ou apenas estava ali, destinada a ser o que era, a transgredir? E acho que o mesmo vale para Ícaro, almas que não cabem no seu mundo porque enxergaram algo além da maçã ou do sol. Precisavam provar para saber o que havia depois. Se não houverem essas almas libertas não haverá continuidade na evolução da alma humana.
Em “Desfuturo”, aparecem conceitos muitos próximos na sonoridade das palavras mas distantes em seu significado. Enquanto estivermos presos nos nossos papéis que a família ou a sociedade decidiu que deveríamos representar, não teremos coragem suficiente de soltar o grito da morte. Muitas vezes é apenas esse grito que pode alcançar os ouvidos do Todo, aquele no qual, para os que se buscam, finalmente se encontrarão.
Em “A Segunda Maçã”, fiquei pensando no tema das falsas verdades. Como quando um conceito é tão bem explorado, tão esmiuçado, que acaba virando uma verdade apenas por isso. Quando li “picando o equilíbrio de bruxas de laboratório” pensei que as bruxas são justamente aquelas que se expõem aos seus desequilíbrios, querendo ser picadas pelas serpentes para que o veneno delas possa lhes fazer mais forte. Essa é a magia. Quando o ser humano ousa, se arrisca, procura seus próprios desafios e quando não os acha, os provoca, acaba encontrando também um degrau acima em sua jornada. E talvez assim, possa evitar que seja extinto.
O HQforismo da página 25 é cheio de simbolismos. A serpente sobre a cabeça, a sabedoria da razão, aquela que consegue atingir um equilíbrio e uma continuidade e que me parece muito rara.
Em “Agora”, senti novamente um tema recorrente, pelo menos para mim, nessas HQs: a pureza, aquilo que é natural e tão completo em si mesmo. É como a semente original que existe em nós, é perfeita, não tem nada a acrescentar. Mas nós humanos vamos colocando camadas e camadas de papéis e máscaras, como se fossem necessários apenas para descobrir, já sentindo o imenso peso de tudo aquilo, que não somos nada disso. Então, paramos e buscamos dentro de nós o que de mais instintivo temos e ali sim nos reconhecemos. Mas para isso, gastamos toda a vida e quando estamos apenas no final dela é que percebemos que essa foi a nossa trajetória. Mas será que os humanos vieram neste mundo para algo mais? Será que teríamos alternativas?
#13 Sistema Solar
A capa traz uma das mais belas ilustrações que já vi do Ciberpajé. Esses lobos que parecem serem de fogo, com esse chifre central apontado para o céu, ao mesmo tempo com imagens das asas da borboleta, rabos de serpente e claro, o semblante humano humildemente prostrado diante da grande abismal, da grande lua da sedução, descendo em suave néctar luminoso (ou não)!
A contracapa colorida me trouxe uma sensação das árvores que estão cansadas da sua trajetória lenta e dolorosa, como o abrir dos ossos do quadril de uma mãe que ajeita o filho no ventre, mesmo que por pouco tempo.
O primeiro HQforismo traz um homem tão sereno, que segura uma árvore em crescimento. Quanta beleza na trajetória vertical desses seres, como nós humanos também temos ao procurar crescer e expandir. Mas nada deve ser feito rápido demais, isso atrapalharia o processo contínuo, o que faria com que nos perdêssemos do nosso caminho.
O HQforismo “Só a flor conhece o sonho selvagem da borboleta”, em conjunto com o desenho, trouxe-me a flor como o destino da borboleta, e apenas nosso destino é capaz de conhecer nossos sonhos mais íntimos, porque todos eles seguirão sem medo para ele. Como se a borboleta amasse a flor por ela ser seu destino e por isso mesmo a flor amasse a borboleta por saber que ela terminaria junto de si, mais cedo ou mais tarde.
No HQforismo “O cervo servia o servil de sonhos de silício e só” me veio a imagem de Cernunnos, um dos muitos selvagens das mitologias, que em sua máxima capacidade representa os potenciais que abrigam toda a força do mundo, e no meu olhar, inclusive a virilidade capaz de fecundar qualquer espécie. Nesta frase, me pareceu que nossos sonhos serão sempre pequenos para todo o potencial que o universo tem de realizá-los.
Em “Lupus Diem” senti que o Ciberpajé novamente nos mostra essa pequenez da alma humana, que destrói nossa capacidade de seguir a nossa intuição. Os animais têm apenas o instinto e assim mesmo são perfeitos e completos; nós humanos somos capazes de abrir o olho da intuição, mas parece que sempre seremos falhos, enquanto os furarmos com as agulhas do egoísmo.
Deste modo, apenas ao voltar para nosso estado animal mais primitivo, conseguimos algo essencial e belo, profundo, sombrio e cauteloso com nossos desejos, pois os desejos do homem o enganam, o convidam a ir contra seu caminho. E daí, é preciso abdicar dele e de tudo para na humildade serena encontrar o verdadeiro amor, aquele que liberta o ser amado para amar outros e para ser amado por eles, pois se entende que quando unidos ao Todo, enquanto alguém amar quem amamos, nós também o amaremos e seremos amados por ele. E esta se torna a verdadeira beleza dos ciclos intermináveis da vida, que nem a morte consegue parar!
Em “Lupus Crepusculum”, vê-se claramente a aurora dos tempos atuais, sombrios, tristes, oprimidos por tudo que fizemos e que agora o nosso espelho reflete as dores cravadas na sociedade. Ao ver a imagem do lobo cósmico, da minha boca saiu, sem querer, a frase: “- Que coisa mais linda!”. Essa imagem é forte, altiva. O lobo cósmico, ao se colocar no lugar do homem, traz todas as suas limitações, aquelas que mancham terrivelmente a magnificência do animal interior, condensa perigosamente sua força, e ela fica prestes a explodir em fúria terrível. Mas o despertar do homem tira o lobo cósmico da sua prisão e o faz ser a divindade que nasceu para ser e que em várias mitologias aparece no fim dos tempos, trazendo o fim para um recomeço. O lobo é isso, essa é a trajetória dele pelo destino humano: traz a destruição para que possa existir uma nova conexão com o todo, ele é o aspecto sombrio em pele, carne e sangue. Ele ama a lua, mas a faz sangrar também, porque ela precisa sentir sua própria dor e ele precisa sentir o sangue dela, é disso que ele se alimenta.
Acredito que “O caldo que escorre da vulva da lua”, é o alimento do lobo, é o que o faz estar em equilíbrio, não porque esse caldo é luminoso, mas porque é sombrio e a sombra da lua e do lobo, ao estarem juntas, tornam-se a luz mais sagrada da alma humana.
P.S. Quando adquiri as Artlectos e Pós-Humanos, comprei todos os números disponíveis, do 2 ao 13. Fui lendo na ordem, mas faltaria a primeira. Agora também tenho esta e lê-la por último me traz a belíssima imagem do que a deusa hindu Kali é para mim: ela é a destruição de tudo, o abismo último, mas só porque traz o recomeço, o berço do novo mundo. Me debruçar sobre a número 1 depois de ler todos os outros números, será um caminho de esperança. Tudo tem seu fim, sempre soube disso, é natural, doloroso e belo. Mas a beleza de um novo começo assenta a dor do final anterior e acredito que essa é a magia da vida! E nossa humanidade hoje está precisando disso! Ler o primeiro capítulo do nosso novo começo!
#1 Mercúrio
E da 13 seguimos para a 1! As cores da capa e os desenhos mostram um maquinário instintivo. Como se a máquina humana fosse um objeto de transformação e para isso usasse tanto os mecanismos que produz, bem como o instinto que contém dentro de si.
Na história “Intransgenia” há uma beleza na suavidade do encontro, da junção, como o ato perfeito e incrivelmente correto da integração total para a geração da criança divina solar, aquela que nasce de um ato de transgressão do comum, porque ela não será comum, mas será única em toda a sua novidade. A imagem da integração leva o tema da morte, algo que morre para que algo novo possa nascer. Também tem a imagem do feminino realizado diante da prole, que é bela e mostra uma sutileza diante da continuidade da vida, um certo alívio até.
Em “Upgrade” o fato da ausência dos braços do personagem parece representar uma incapacidade de tocar, de pegar e consequentemente, de realizar. Como se não pudesse ir adiante. Braços também simbolizam ramos, algo que vai além, que ramifica. Mas a contraparte não vê essa ausência e sim, vê aquilo do que ele está repleto: a doçura. Esta é apaixonante, a doçura da vida, que temos em nós mas que vemos no outro. O amor que transborda as limitações. Mas quem está envolto em um sentimento de posse já construiu inicialmente essas limitações, para limitar o espaço dos que podem chegar, tocar e levar embora o objeto do seu amor. Por isso mesmo, jamais vai compreender um amor sem barreiras, que ultrapassa, que fica gigante até ao ponto de não caber dentro de si. Então, acredita que para ter aquilo que quer precisará somente agarrar, segurar e prender.
Em “Igualdade” o desenho final me trouxe o que as religiões podem representar: uma prisão, o sacrifício daquilo que quando é livre é grande. Assim como o batismo define um lado para pertencer: se escolher, o outro lado sempre será errado. Mas é no meio deste cabo de guerra de bem e mal, como no episódio hindu da bateção do oceano lácteo no qual deuses e demônios juntos agitaram o oceano para obter o néctar sagrado, é que está um mundo de verdadeiras possibilidades. O espírito livre segue para todas as partes de escuridão e de luz e ao prová-las, poderá escolhê-las. Mas se não conseguir experimentar, se submeterá aos ideais construídos por outros sem jamais experimentar seu sagrado livre arbítrio.
Minha percepção de “Fé” pode ter sido diferente do objetivo para o qual ela foi criada, mas senti a tensão entre a racionalidade prática e o deslumbramento intuitivo que cada ser humano parece experimentar ora ou outra na vida. Podemos ver no corpo morto de um ente querido, o fato de ele não estar mais entre nós ou podemos ver que ele finalmente compreenderá o que tem depois da morte e que é um privilegiado por estar adquirindo o conhecimento que ninguém terá em vida. Olhar a beleza de uma flor com um sorriso nos lábios sem questionar nada, simplesmente aproveitando pode ser uma manifestação da fé… Da fé em si mesmo, de que é merecedor disto. Mas esperar que a flor sorria para nós é uma tolice que estraga toda beleza do ato puro de admirar e agradecer.
Em “ClonAids” entendo que aparece o tema da eterna repetição. E me vieram à mente as criações mitológicas que surgiram sem uma contraparte. Mas daí temos que lembrar que esses seres, em solidão primordial, continham dentro de si todo o caos ainda em ebulição, configurando-se e organizando-se. Isso faz com que eles não sejam unilaterais, mas que contenham muitas faces dentro de si, repletos de possibilidades. O que virá disso será uma novidade e o que é uma novidade senão uma bela supernova: no estágio mais evoluído explode em brilho e depois vai perdendo esse brilho aos poucos. A reprodução natural cria nessa “roleta russa de mutações” e cada vez que isso ocorre, acaba gerando mais uma supernova e mais uma, e mais outra, trazendo possibilidades infinitas e completamente inéditas para a nossa natureza simplesmente humana.
*Larissa Dias é Mitóloga e Psicoterapeuta em São Paulo.
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show!
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