terça-feira, 21 de junho de 2022

[Resenha] Licanarquia: um convite ao encontro da própria essência, um verdadeiro reencontro com seu eu selvagem em meio ao caos! Por Kesia Ramos

 


Licanarquia: da inadequação na ordem ao reencontro com seu eu selvagem em meio ao caos


Licanarquia é o álbum colaborativo entre Ciberpajé (Edgar Franco - roteiro) e Toninho Lima (desenhos), que foi financiado pela plataforma Catarse durante o ano de 2021 e recebebe o selo da Editora Atomic. A narrativa foi inspirada por uma viagem de Ciberpajé em direção à Ituiutaba, sua terra natal. Na estrada ele avistou um lobo-guará morto e isso o impactou. Impactou de tal forma que o resultado disso vai além de Licanarquia, é um aglomerado de narrativas de seu processo criativo (fanzines, entrevistas, anexos etc.) que proporcionou a imersão do leitor sobre a expectativa do recebimento do álbum e que culminou na experiência imagética da leitura deste.

Apesar da história ter sido elaborada tempos antes, eu considero que o processo de recepção da obra perpassa por uma estética relacional, onde leitores interagem de forma a criar narrativas outras, nas quais o Lobo retratado de forma autobiográfica pelos artistas não é mais o Ciberpajé. É aí que o artista entrega seu Eu para o mundo e o expectador sai do lugar de passividade a fim de transmutar o tema apresentado, passando a compor a obra. O lobo trata-se na verdade de uma persona presente no mais íntimo de cada um daqueles que se atrevem a adentrar no mundo da Aurora Pós-Humana.

Cabe dizer, que os anexos são parte importante por rememorarem aspectos formativos e evolutivos de Ciberpajé como artista, e isso ajuda a compreensão por parte do leitor iniciante de suas obras até o mais assíduo. O álbum possui mais imagens do que textos, talvez numa tentativa de expressão máxima de conexão entre visualidades e código (e porque não desenhista e roteirista).

Ao ler essa história fui invadida pelos sentimentos de melancolia e angústia mixados com real necessidade de renovação pessoal. Para além da transmutação eu percebi que é necessário um ato mágico, criativo para que a esperança e a vida tenham um propósito singular que subverta a ordem vigente que dita a cada indivíduo como ele deve se sentir, se apresentar ao mundo, se vestir, falar, pensar, agir, trabalhar, ser etc. e tantas outras categorias cujo único propósito é promover a inadequação, a segregação e a exclusão social. Essas categorias ditam espaços, determinam quem os ocupa e banalizam o diferente.

Durante a leitura de Licanarquia você irá encontrar as seguintes partições: fome, sede e medo. Cada um desses elementos compõe a vida tanto daqueles que estão aprisionados ao sistema quanto aos que já assumiram seu rompimento com ele. O que difere então a fome, a sede e o medo de uma pessoa que se acomodou com a ordem para aquela que reencontrou seu eu selvagem? Acredito que a resposta para esta pergunta está contida nas páginas 44 e 48 (ver imagens abaixo). Nela vejo que a resposta perpassa o abandono dos velhos hábitos, a dor da perda na reconciliação com o passado e o presente, e o rompimento com a angústia sobre o futuro, bem como a necessidade animalesca e primitiva da fome de si e do mundo. Por fim, uma renúncia à normatividade de uma prisão mental já cômoda de apenas habitar o mundo e não o perceber em suas potencialidades.

Licanarquia é um convite a encarar esse processo num rasgar-se em si mesmo ao encontro da própria natureza, da própria essência, um verdadeiro reencontro com seu eu selvagem em meio ao caos.

Quadrinho da página 44 de Licanarquia

Quadrinho da página 48 de Licanarquia

KESIA RAMOS é  artista, zineira, professora de Artes Visuais e Mestranda em Artes. 

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