Licanarquia: da inadequação na ordem ao reencontro com seu eu selvagem em meio ao caos
Licanarquia é o álbum colaborativo entre Ciberpajé (Edgar Franco - roteiro) e Toninho Lima (desenhos), que foi financiado pela plataforma Catarse durante o ano de 2021 e recebebe o selo da Editora Atomic. A narrativa foi inspirada por uma viagem de Ciberpajé em direção à Ituiutaba, sua terra natal. Na estrada ele avistou um lobo-guará morto e isso o impactou. Impactou de tal forma que o resultado disso vai além de Licanarquia, é um aglomerado de narrativas de seu processo criativo (fanzines, entrevistas, anexos etc.) que proporcionou a imersão do leitor sobre a expectativa do recebimento do álbum e que culminou na experiência imagética da leitura deste.
Apesar da história ter sido elaborada tempos antes, eu considero que o processo de recepção da obra perpassa por uma estética relacional, onde leitores interagem de forma a criar narrativas outras, nas quais o Lobo retratado de forma autobiográfica pelos artistas não é mais o Ciberpajé. É aí que o artista entrega seu Eu para o mundo e o expectador sai do lugar de passividade a fim de transmutar o tema apresentado, passando a compor a obra. O lobo trata-se na verdade de uma persona presente no mais íntimo de cada um daqueles que se atrevem a adentrar no mundo da Aurora Pós-Humana.
Cabe dizer, que os anexos são parte importante por rememorarem aspectos formativos e evolutivos de Ciberpajé como artista, e isso ajuda a compreensão por parte do leitor iniciante de suas obras até o mais assíduo. O álbum possui mais imagens do que textos, talvez numa tentativa de expressão máxima de conexão entre visualidades e código (e porque não desenhista e roteirista).
Ao ler essa história fui invadida pelos sentimentos de melancolia e angústia mixados com real necessidade de renovação pessoal. Para além da transmutação eu percebi que é necessário um ato mágico, criativo para que a esperança e a vida tenham um propósito singular que subverta a ordem vigente que dita a cada indivíduo como ele deve se sentir, se apresentar ao mundo, se vestir, falar, pensar, agir, trabalhar, ser etc. e tantas outras categorias cujo único propósito é promover a inadequação, a segregação e a exclusão social. Essas categorias ditam espaços, determinam quem os ocupa e banalizam o diferente.
Durante a leitura de Licanarquia você irá encontrar as seguintes partições: fome, sede e medo. Cada um desses elementos compõe a vida tanto daqueles que estão aprisionados ao sistema quanto aos que já assumiram seu rompimento com ele. O que difere então a fome, a sede e o medo de uma pessoa que se acomodou com a ordem para aquela que reencontrou seu eu selvagem? Acredito que a resposta para esta pergunta está contida nas páginas 44 e 48 (ver imagens abaixo). Nela vejo que a resposta perpassa o abandono dos velhos hábitos, a dor da perda na reconciliação com o passado e o presente, e o rompimento com a angústia sobre o futuro, bem como a necessidade animalesca e primitiva da fome de si e do mundo. Por fim, uma renúncia à normatividade de uma prisão mental já cômoda de apenas habitar o mundo e não o perceber em suas potencialidades.
Licanarquia é um convite a encarar esse processo num rasgar-se em si mesmo ao encontro da própria natureza, da própria essência, um verdadeiro reencontro com seu eu selvagem em meio ao caos.
KESIA RAMOS é artista, zineira, professora de Artes Visuais e Mestranda em Artes.
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