segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

[Resenha] EP "Ciberpajé - Reino Devastado": reflexões e vivências necessárias, traduzindo gritos, revoltas, medos e até tristezas. Por Thaisa Maia

Arte do Ciberpajé (Edgar Franco)

Aristóteles, ao se referir ao termo Catarse, nos trouxe a ideia de purificação das almas através de descargas de sentimentos e emoções provocados por traumas. Nesse sentido, a arte pode assumir esse papel não só para o seu criador - ou criadores -, como para quem dela usufrui e, em sua subjetividade, vivencia e recria a arte apresentada. Assim, o EP "Reino Devastado", parceria do Ciberpajé (GO) com o projeto Horror (PR), surge cumprindo um papel catártico diante das mazelas vivenciadas pela humanidade, principalmente as que intimamente estão relacionadas com a sordidez de meios políticos, religiosos e ligados ao lucro à qualquer custo (inclusive de vidas).

As longas composições sonoras, somadas aos aforismos, trazem mais que músicas, trazem o que eu chamaria de "cinema sonoro", de forma que criam ambientes e cenas passíveis de serem construídas e vivenciados pelo espectador. A respeito disso, em "Pobre Reino Devastado" (primeira faixa), os ecos por onde ressoa a voz do Ciberpajé - no início da música - já anunciam uma ambiência desértica, reforçada por sonoridades que lembram fortes ventos uivantes (ou seriam gritos de uma natureza cansada da destruição dos homens?). Além disso, o enfoque à guitarra me faz rememorar uma cena de Fury Road (Mad Max), protagonizada por um Guitar Guy, pois apesar das composições diferentes - obviamente -, o instrumento parece ser utilizado para dar voz ao caos advindo de situações apocalípticas e tensas. Também, as vozes robotizadas e em coro aludem ao anestesiamento da humanidade presente em cada homem, bem como, à manipulação por mecanismos de poderosos que criam verdadeiros exércitos de robôs, ou como menciona o aforismo, "cegos fardados".

Em "Culto", resgato logo de início a obra fílmica "Matrix", mais particularmente os sons que envolvem as máquinas de simulação e que são semelhantes aos reproduzidos no início da faixa. Nesse sentido, assim como na obra mencionada, em que pessoas vivenciam as ilusões propagadas pelo sistema da Matrix e de seus controladores, em "Culto" há uma forte crítica ao adormecimento da consciência humana de forma que os poderosos são endeusados ( e há aqueles que, mesmo convidados ao despertar, agem como Cyphers e cultuam a "ignorância como uma benção). Além disso, os coros contrastam com a voz visceral e sombria do Ciberpajé, este que, para além de máscaras de devotamentos e simulações de angelitudes, escancara as podridões pelo qual, muitas vezes, preferimos cerrar os olhos.

Finalmente, em "Morte Rubra", a chaleira traz uma sensação de desconforto constante, como se emitisse gritos agudos e agônicos, como se refletisse o grito da própria humanidade que já não consegue suportar a si mesma! Somado a isso, tem-se o barulho dos tambores e que me lembram uma marcha de execução (seria a marcha de execução da própria humanidade?). Uma marcha permeada por ares ritualísticos, ancestrais. Ao mesmo tempo, essa mesma sonoridade me lembra uma marreta quebrando algo, destruindo compassadamente e impiedosamente esse algo, que já não mais se sustenta, que se ultrapassa ou mesmo já está em ruínas (a humanidade?). E o próprio aforismo já anuncia uma morte iminente de um povo que cultua alguém que o direciona a própria destruição (nesse sentido, em um cenário político pautado no fanatismo religioso, na ignorância e na avidez pelo lucro, é possível perceber que esse cultuar é real).

Agradeço por esse EP que me trouxe muitas reflexões e vivências necessárias, traduzindo gritos, revoltas, medos e até tristezas que também são meus, diante das constatações advindas de nossos cenários políticos, sociais, religiosos e, particularmente, ligados a pandemia que se sustenta pela ignorância e falta de empatia.

*Thaisa Maia é poetisa e educadora graduada em letras pela UFG.

Ouça o EP "Ciberpajé - Reino Devastado", parceria com o projeto Horror, clicando na arte de capa abaixo:




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