Fredé CF com Renovaceno em mãos e máscara MekHanTrópica
“Renovaceno” é fantástico!
Acabei de fruir pela primeira vez a nova obra de arte poética-visual-narrativa- filosófica-transcendental em quadrinhos do Ciberpajé (Edgar Franco). Como de praxe, e muito bem colocado por Danielle Barros no posfácio, saio com uma sensação de estranheza e êxtase do contato com suas obras, tão repletas de elementos conceituais. Um banquete de signos. Ao absorver cada página das cosmogonias ali criadas nos traços, aforismos, textos, hibridismos visuais e experimentações do Ciberpajé, me senti deslocado a outras dimensões, onde as coisas acontecem de formas diferentes da nossa realidade ordinária racionalizada e quantificada do dia a dia, mas que, ao mesmo tempo, tais deslocamentos criativos refletem e possibilitam refletir sobre aspectos da essência do que somos. Como em um vislumbre alucinógeno, no qual as coisas possuem formas, cores e movimentos únicos, parecendo dançar num ritmo sideral, contemplativo, extraordinário e anti-gravitacional, o álbum transcende as maneiras tradicionais de linguagem e narrativas padronizadas. Uma espécie de voo onírico-filosófico, que altera e expande a percepção sobre a vida e a consciência, sem a necessidade de uso de substâncias enteogênicas para isso.
Nesse caso a obra de arte, em si, é a substância de ativação e expansão da imaginação, do pensamento. Atua como um portal psicodélico de transmutação e ressignificação de memórias, afetos, verdades e certezas institucionalizadas e incrustadas por convenções culturais fechadas e rasas. A obra tocou-me acessando lugares mentais importantes de expansão, integração holística e desconstrução ordinária, me deslocando para a imersão, em um movimento cósmico de transcendência e contestação de mim mesmo e da sociedade, pela leitura. Já de início, pela arte da capa, há um choque, um impacto sensorial que engatilha a fruição do álbum em quadrinhos pós-humanistas e transcendentes em questão. O contraste das cores da capa com o preto e branco do interior é extasiante.
A apresentação do autor sobre os conceitos inspirados nas ideias de Lovelock e o prefácio de Octávio Aragão já anunciam a potência do que virá e nos deixa ansiosos pelo embarque. Em cada ser, cenário ou relação entre os elementos presentes nesse universo, me deslocava cada vez mais para dentro dos conceitos e, sobretudo, pra dentro de mim mesmo, olhando para as afeições, sentimentos, arrogâncias, ignorâncias, hipocrisias, luzes e sombras interiores que me acompanham. Aspectos expostos ou ocultados pelo meu próprio ego e olhar emergem e se projetam na poética. Uma espécie de “contranarrativa” intrínseca que nasce do processo de fruição e expõe características comuns típicas da humanidade atual desconectada de si e do planeta, deslocada pelo autor a um futuro distópico sob olhar antropoceno de dominação e exploração. Uma sociedade estabelecida até então por visões restritas e hipócritas calcadas em uma ordem moral erigida cotidianamente em função do lucro e das coisas, transformando aspectos qualitativos da existência em números.
A primeira leitura é sempre uma experiência mais solta, mais visceral, mais orgânica, emotiva, como um mergulho cego e não tão racional, mas importantíssima para sentir a pegada da obra de arte. Essa pegada às vezes pode assustar, repelir a obra, ou, ao contrário, te fazer curtir, se interessar e mergulhar naquela proposta. Comigo aconteceu de me chamar bastante a atenção e me provocar curiosidade e identificação. Me fez deixar-me levar de maneira mais livre possível, conduzido pela fluidez do movimento, dos desenhos contorcidos, dos símbolos presentes e do ritmo de cada página que passava. Tentei deixar rolar, imergindo e me hibridizando em cada contato com os escritos e as imagens, adentrando e me transformando durante a jornada nesse universo pós-humano que o Ciberpajé nos convida a entrar.
Uma coisa que gosto bastante nesses contatos com produções artísticas autorais tão potentes e viscerais, é que sempre me instiga e abre aspectos para a minha subjetividade ser projetada e, até mais do que isso, ressignificada em novas possibilidades que brotam daí, saindo da inércia. Espaços são abertos para o imaginário também poder criar. Instiga as ideias, e, como um grande fã de ideias, me delicio. Como dito no aforismo da página 36, “criar realidades é mais divertido e transformador do que navegar em realidades alheias”, por isso também “Renovaceno” me proporcionou essa transcendência nas entrelinhas de sua navegação. Ao navegar em seus mares mágickos, ora caóticos, ora aprazíveis e suaves, inspirou-me a criar minhas próprias narrativas associadas, e de certa forma ali imbricadas, àquelas temáticas. Me pego vislumbrando sementes de criação para minhas hortas mentais, como pólens que vem e ajudam a florescer novas realidades e vidas a partir dessa experiência. Escritos, músicas, trechos de conexão com minha pesquisa de doutorado, enfim, comigo.
Ao entrar em contato com a obra, houve uma transformação no âmago de reflexões acerca de dilemas existenciais que trago em minha vida e minhas criações acadêmicas e artísticas. Isso ocorreu naturalmente, fluindo com leveza, de maneira transcendental, através da condução narrativa filosófica feita pelo autor. Irei com certeza reler novamente, por diversas vezes e ocasiões. Me decifrar pelas camadas dessa obra que não se esgota em um única leitura. Como grandes obras fazem, “Renovaceno” instiga o que há de misterioso e prazeroso na vida: o movimento e a transformação. Evoca a dúvida e opera no não fechamento conclusivo sobre os temas abordados. Pelo contrário, abre as perspectivas para novos devaneios e se movimenta na desconstrução, a partir de nós mesmos, do olhar antropoceno em direção ao infinito caótico da existência que se renova ad infinitum. Existência essa que só de fato existe no agora presente em momentos de paixão, absorvidos e intensificados pelo deleite da fruição artística e da vida em movimento contínuo metamórfico. Um fluxo expansivo e sinuoso de integração com o todo, essencial trajeto para, enfim, saltarmos de ponta e nadarmos no nada de uma vida indomada e serena. Infinada. Enfim, nada. O nada que tudo absorve. O nada que tudo é e em tudo está. Talvez até o nada transfigurado pelas redes telemáticas em “zeros” e “uns” hipnotizantes, desconectados da essência hipertecnológica da arte e do habitat. Digitos distantes de Gaia. Expurgados da vida, do pulsar. A obra aponta mas transcende isso, como coloca de maneira certeira Gazy Andraus, pois, vislumbrando o nada antropoceno, se renova e “nos reconecta ao todo, nos religa à nossa própria essência”. Autoconhecimento transbinário, trafegando pelas zonas cinzas que o digital insiste em aniquilar com padronizações MekHanTrópicas.
A arte de trazer de volta momentos sinceros, únicos, qualificados, materializados, aproveitados com intensidade rica, alegre e visionária, no prazer vivo da carne, da aura, dos sentidos que tocam e são tocados pela obra que transita poeticamente e transcende nas entranhas do analógico e do digital. No agora, na essência, no que há. Pela arte pela vida, pelo amor, pelo existir e insistir no mundo. Por deixar desabrochar.
*Fredé CF (a.k.a. Frederico Carvalho Felipe) é artista transmídia, criador do universo ficcional MekHanTropia, pesquisador, professor e doutorando no Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da UFG, em Goiânia.
Renovaceno tem tiragem limitada, adquira o álbum diretamente com a editora enviando e-mail para: editoramerdanamao@yahoo.com
Parceria entre o Ciberpajé e a Editora Merda na Mão.
ResponderExcluirApoio Mutuo sempre.
Análise qualificada. Foi para além de uma visão pela desconstrução da obra.
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