A ficção mostrou-se, em muitos casos, a vanguarda das transformações da sociedade. Um Orwell ou um Huxley que o diga. As “previsões” feitas por esse gênios estão a cada dia mais visíveis em nosso cotidiano. Somos constantemente vigiados – e não necessariamente sem saber, pois somos os narradores de nossos próprios atos nas telas dos nossos computadores/telefones – e buscando a cada dia uma nova droga que nos traga a felicidade eterna e sem culpa. A visão alcançada pelas suas histórias e a percepção dos detalhes que para muitos eram invisíveis levaram ambos à criação de universos que naqueles tempos eram ficção, mas hoje nem tanto.
As profecias anunciadas pelos relatos dos artistas merecem atenção. Elas trazem à tona um conjunto de informações que muitas vezes estão dispersas, mas com a astúcia e pesquisas intensas, são capazes de direcionar tais elementos a um determinado local formando, assim, um cânone profético sobre as transformações que nos aguardam. É sob essa ótica, de pesquisa, arte e profecia, que podemos observar uma das várias facetas do trabalho do professor Edgar Franco.
Docente da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás, natural de Minas Gerais e hoje morador de Goiânia (GO), formado em Arquitetura e Urbanismo, Doutor e Pós-doutor em Artes, possui também destaque no campo da música como cantor, compositor e performer da bandaPosthuman Tantra. O conjunto de sua obra (música e HQ’s) já foi editado internacionalmente na Inglaterra, Alemanha e Suíça. Seu trabalho mais recente no mundo das HQ’s foi feito em colaboração com o desenhista Mozart Couto, conhecido em editoras internacionais como a DC e a Marvel. O resultado da parceria é o romance gráfico “BioCyberDrama Saga”, publicado pela Editora da Universidade Federal de Goiás como parte da coleção Artexpressão, que é dedicada exclusivamente a livros de arte. É nesse romance que o universo criado – e em expansão – por Edgar mostra-se a nós.
O principal tema que permeia a obra é a ideia do pós-humano. Este novo ser, que vai além das capacidades naturais (biologicamente falando) do ser humano, já não corresponde aos anseios daqueles que estão nesses corpos. É necessário ampliar a capacidade desse frágil animal, que não consegue expandir sua potência intelectual e nem sua força física. Nesse campo a tecnologia, criada pelo homem e para o homem, deverá servi-lo. Os chips de computador farão uma simbiose com a carne humana; os demais animais e plantas podem oferecer mais que alimento à humanidade, também podem oferecer seu gene, sua força, sua forma, suas qualidades. Eis a aurora pós-humana.
Um mundo futurístico no qual a humanidade está dividida entre os que ortodoxamente não aceitam essas abominações; aqueles que aceitam, em partes, as melhorias oferecidas pelo advento da ciência, com os implantes cibernéticos e os aperfeiçoamentos com base genética retirados de plantas e/ou animais; os que imergem no poder (e no sonho) do conhecimento total possibilitado pela transbiomorfose (passar a sua consciência para um chip de computador, tornando-se algo semelhante a um androide e, posteriormente, modificando-se até tornar-se próximo a um coletor de informações); e os que aderem apenas às modificações genéticas, rendendo-se aos arquétipos totêmicos e buscando um aperfeiçoamento espiritual e harmônico com a natureza e com seu totem. Nesse mundo futurista, o ser humano – como em qualquer outro tempo – está em conflito junto às possibilidades de mudanças drásticas, o que poderíamos colocar como a essência do homem, e a conservação desta, que o coloca entre duas vias que culminam em conflitos radicais sobre a melhor – e única – opção a ser seguida.
O diálogo entre as facções que habitam o mundo de “BioCyberdrama” lembra elementos de correntes de pensamento conhecidas: osresistentes, os humanos que mesmo vendo sua pequenez frente aos demais seres que o rodeiam, ainda querem se manter assim. Vivem como nós, estudando, trabalhando, criando e cultuando suas divindades. Algo que remete à fragilidade do homem, ao seu desespero frente ao desconhecido e ao radicalmente novo e ameaçador e às possibilidades de melhorias sem deixar de ser o que é. Ele ainda presa por ser puro, pois os resistentes veem que são apenas eles que podem dar sentido às ambivalências humanas. Ser um extropiano, aquele que abdica do corpo de carne e funde sua consciência com a máquina, é deixar a mortalidade de lado e dedicar-se ao conhecimento de todas as coisas, e com isso perseguir um certo nirvana, obter a iluminação. Já os tecnogenéticos estão na busca da sua transformação no totem com o qual se identificam, lembrando dos cultos primitivos nos quais o totem sagrado de um animal (que Mircea Eliade, Joseph Campbell e G. C. Jung relatam ser elementos comuns no mundo arcaico) era o exemplo a ser alcançado, possível hoje pelo altíssimo nível do desenvolvimento da ciência humana.
O romance gráfico mostra o quão grande a pesquisa do professor Edgar Franco foi. O início do álbum é uma introdução na qual ele relata os principais artistas e intelectuais contemporâneos que já dialogam sobre essas mudanças as quais já ocorrem, em um nível inicial, em nossa sociedade. Desde as artes plásticas, passando pela música, literatura até o cinema, encontramos aqueles que já dialogam de uma forma ou outra com esse tipo de conceito, da mudança do homem como tal e sua busca por novas perspectivas de si. Após a apresentação das fontes, Edgar Franco também oferece descrições do seu mundo. Possui mapas e informações específicas de cada um dos grupos que habitam seu universo. Essa parte é um prato cheio para os jogadores de RPG, pois as descrições são detalhadas, o que deixa pronto para uma adaptação para as mesas de jogos.
A iniciativa editorial da Editora da UFG, ao publicar o romance gráfico de Edgar Franco e Morzat Couto, foi algo excepcional. Principalmente no Brasil, onde há uma ligação forte dos quadrinhos com o universo infantil, foi algo importante para o cenário e a abertura das possibilidades que a mídia oferece. A arte é incrível, com cenas muito bem elaboradas e belas. Para além dos aspectos artísticos, há referências a elementos históricos e culturais na obra que dão um sabor especial à leitura. A HQ foi indicada recentemente ao prêmio HQMIX na categoria “Edição Especial Nacional”.
Pois bem, há mais coisas no universo vislumbrado pelo ciberpajé, mas em vez de descrevê-las aqui, deixo um convite para que você venha ser o Grande Irmão a observar esse Admirável Mundo Novo.
No post original ainda tem um vídeo do Ciberpajé autografando Biocyberdrama Saga do autor desta INCRÍVEL resenha!