Conduzida por Danielle Barros IV
Sacerdotisa*
Essa entrevista faz parte de uma série de entrevistas que tenho realizado com o
Ciberpajé Edgar Franco** enfocando múltiplos aspectos de sua obra artística,
pesquisa, vida e ideário. Essa é a terceira da série de entrevistas que abordam
sobre os processos criativos a partir de estados ampliados de consciência.
Foto: IV Sacerdotisa
1- Conte-nos como surgiu esta oportunidade de experienciar novamente a
Respiração?
Ciberpajé: Essa foi minha segunda
experiência com a técnica de expansão da consciência criada por Stanislav Grof
e sua esposa Christina Grof. Dessa vez ela teve conexão direta com a pesquisa
acadêmica do doutorando Matheus Moura, orientada por mim no Programa de
Pós-graduação em Arte e Cultura Visual, da Faculdade de Artes Visuais da UFG,
em Goiânia. A tese pioneira estuda os processos criativos dos quadrinhos
visionários, e envolve também exercícios de criação utilizando dois métodos de
expansão da consciência, a Respiração Holotrópica e a ingestão do enteógeno
Ayahuasca. A pesquisa foi aprovada recentemente pelo Comitê de Ética em Pesquisa
da UFG, e essa sessão de respiração realizada no centro credenciado Al Jardim, contou com o acompanhamento de 2 psicólogos,
Álvaro e Dora Jardim, que têm formação no Grof Trainning, nos EUA e estudaram e
se credenciaram diretamente com o criador da técnica. Álvaro e Dora aceitaram
acompanhar a nossa pesquisa e então surgiu logo essa oportunidade. Eu e Matheus
já havíamos realizado anteriormente uma outra respiração acompanhados pelo
casal. (Leia entrevista sobre a primeira experiência AQUI ).
2- Como foi essa experiência do dia 11 de junho de 2016?
Éramos 6 pessoas para a realização da
respiração, 2 homens e 4 mulheres. Dos 6, 3 já haviam passado pela experiência,
eu, Matheus e uma das mulheres, que por uma sincronicidade esteve conosco na
primeira respiração. Existe um acordo tácito que é feito antes da respiração de
não revelarmos a identidade das pessoas que participaram da sessão, apesar
desse acordo abrir a possibilidade de relatarmos o que vimos, mas mantendo o
sigilo dos envolvidos. A respiração dura 3 horas, e sempre é feita com um
acompanhante, ou seja, tivemos duas sessões, na parte da manhã 3 pessoas
respiraram e as outras 3 acompanharam, além - é claro - da supervisão cuidadosa
dos psicoterapeutas treinados Álvaro e Dora durante todo o tempo.
Assim, combinei com Matheus que ele
realizaria a respiração pela manhã e eu no período vespertino. Depois da sessão
inicial, na qual nos apresentamos e realizamos um breve momento meditativo,
iniciaram-se os trabalhos. A sala é muito aconchegante com colchões e
travesseiros espalhados em todo o chão, para impedir ferimentos durante a
“viagem”. O sistema de som é excelente o que faz com que as músicas - que são
uma das linhas mestras estruturadoras do processo - vibrem cristalinas em
nossos corpos. Matheus teve a melhor experiência dele com a respiração, segundo
relatou-nos. Não combinamos nada previamente sobre o processo criativo de uma
história em quadrinhos que seria deflagrado durante essa experiência. Logo que
terminou a sessão e ele foi imediatamente para a sala ao lado desenhar sua
mandala - parte do processo de finalização da Respiração Holotrópica - eu lhe
pedi que além da Mandala escrevesse um breve texto poético inspirado na
experiência que serviria como roteiro para nossa história em quadrinhos. Ele
topou de imediato, solicitei-lhe que não me mostrasse o texto!
Algo a ser relatado sobre a sessão da
manhã foi a visível e impressionante experiência de uma das presentes, que em
movimentos espasmódicos e gritos lancinantes reviveu o momento do parto. Para
quem assistia era impossível não se emocionar, eu fui muito tocado pela energia
dessa mulher e outra das presentes, que acompanhava sua colega respirar, chorou
muito ao ver a cena.
Ao fim da sessão matinal fomos todos
juntos almoçar e retornamos por volta de 14:00 horas para o início da segunda
sessão, dessa vez eu respiraria. Sempre vou sem expectativas para essas
experiências transcendentes, mas te digo, foi algo avassalador para mim, de uma
potência incrível. Quando terminou, a sensação que eu tinha era de que eu havia
sido pulverizado e reconstruído.
Foi algo indescritível. Mas que
tentarei resumir em palavras para você e os leitores dessa entrevista.
3- E como foram as sensações e a experiência visionária desta
oportunidade?
Bem, como sempre digo, experiências
dessa ordem nunca conseguem ser verbalizadas a contento, a linguagem verbal,
oral e escrita é muito limitada, mesmo assim acho importante relatar da forma
que é possível, e sabendo dessas limitações os momentos chave da experiência
transcendente.
Ao iniciar a respiração - e isso
acontece com a pessoa deitada no colchão, com meia luz ambiente e tapa olho -
eu estava extremamente tranquilo, foi uma das vezes em que eu estava mais
sereno ao iniciar uma experiência de expansão da consciência. Devido a essa
tranquilidade decidi ser ainda um pouco mais radical ao respirar, ou seja,
desde o início acelerei e intensifiquei muito minhas inspirações e expirações,
respirando abdominalmente como em certos pranayamas e promovendo grande
hiperventilação cerebral. É um exercício difícil, mas tentei mantê-lo com
completa intensidade nas duas primeiras músicas e ao fim da segunda já comecei
a sentir o corpo flutuar, uma certa leveza incomum e também passei a ver bolas
luminosas avançando em minha direção, de tonalidade amarela e dourada. Pouco
depois algo chamou-me atenção, e mesmo ali de olhos fechados eu podia ver o meu
corpo, levantei a cabeça do travesseiro e olhei meus pés, barriga e peito, na
altura do peito eu senti um estranhamento pois via penugens como de ave, penas
esbranquiçadas. Depois senti algo louco, parece que eu não tinha mais boca era
uma sensação estranha, levei as mãos ao rosto e senti um enorme bico no lugar
da boca, era concreto, estava ali! Era assustador e maravilhoso.
Segundo o psicoterapeuta Álvaro
Jardim, nessa hora (risos) eu fiquei com boca de pato, como as pessoas quando
vão tirar selfies. Ele falou que era engraçado de se ver. Na sequência, ao
olhar para minha mão direita e braço eles não eram mais humanos, era uma asa,
com penas brancas e acinzentadas! Foi maravilhoso vislumbrar aquilo, nessa hora
sentei-me e comecei a observar a asa, fazer movimentos com ela. Eu sorria de
alegria, era divertido. No entanto, minha mão esquerda ainda era humana, apesar
de ter muitas penugens nela, mesmo assim encenei um voo. Estava sentindo-me
como uma ave, mas não totalmente, pois minhas pernas ainda eram humanas.
Diverti-me muito durante um tempo encenando como seria voar, a asa era tão
linda, era mágico mexê-la no ar, apesar do bico ainda me soar estranho.
4 - Você saiu 'voando' pela sala? Ou só ficou maravilhado com as asas?
Não, minha vontade era essa, mas
tinha ali a sensação de incompletude também. Não foi uma transformação
completa, eu até senti um impulso maior de tentar voar, mas olhava para a mão
esquerda e via que seria impossível, então me contentei em insinuar um voo e
brincar com minha bela asa direita!
5- Além de sentir-se como uma ave houve mais sensações intensas durante
a experiência?
Logo depois de brincar longamente com minha asa, deitei-me novamente e comecei
a intensificar a respiração. A asa sumiu naturalmente e eu enxergava meu corpo
de novo, mesmo de olhos fechados. Em poucos instantes comecei a modificar-me
novamente. Senti coisas pesadas em minha cabeça, e fui imediatamente tocá-las.
Percebi que eram dois chifres de tamanho médio que saiam da base de meu crânio,
toquei-os com um entusiasmo estranho, senti toda sua extensão com muita
empolgação, percebi algo estranho em minha boca, desci os dedos para tocá-la.
Eu tinha uma língua enorme e presas, caninos muito protuberantes. De repente
minha pele era toda vermelha e muito mais peluda, minhas mãos tinham dedos
grossos e de unhas longas. Percebi que eu era um DEMÔNIO, desses bem
tradicionais: face humana, barba, orelhas pontudas, pele vermelha, vamos dizer
assim, um quase clichê visual da imagem ocidental que temos do demônio.
Virei-me para conferir se eu tinha rabo, e lá estava ele! Diverti-me ao fazê-lo
balançar pelo ar com uma ponta em forma de flecha. Aí comecei a ter uma
poderosa sensação, eu sentia que era mau, de uma maldade muito profunda e pura,
maniqueísta até; completamente mau, sem reservas, impiedoso, cruel. Eu estava
gostando da sensação, gostando muito, passei a gargalhar de forma monstruosa, e
lembrei-me de meus pés. Levantei a cabeça para olhá-los e achei fantástico ter
cascos bipartidos no lugar de pés. Sentia-me poderoso como nunca, um poder
obscuro, absurdamente mau. Não reprimi a sensação, deixei que ela viesse por
completo e sentia um prazer grande com ela. Finalmente decidi testar meu poder,
sentei-me ali olhando maravilhado meus pés e dei uma pisada brutal no chão com
meu casco direito. Vi o chão rachar completamente e as rachaduras continuarem
até sumirem no horizonte. Gargalhei alegre e soturnamente, sentia-me pleno,
completo. Foi insano, e algo que até pensei se deveria revelar, mas acho
importante ser completamente sincero nesse relato, por isso decidi contar sem
preocupar-me com possíveis julgamentos.
6- Você se sentiu como um demônio (anjo caído) e uma ave (anjo símbolo de
ascensão). Como é ser do ar e da terra numa mesma experiência?
Essa foi apenas a primeira parte da experiência, logo relatarei os outros
momentos dela e o mais impactante de todos. Mas sua pergunta traz algo sobre o
que ainda não havia refletido e racionalizado, é verdade, o voo representando
ascensão e o demônio introspecção, mergulho no abismo. Curiosamente o aspecto
ave teve algo de incompletude, não realizei o voo completo, mas isso não me
incomodou, senti um prazer enorme ao simular um voo, e tinha consciência da
limitação.
Já em minha transmutação em demônio
senti plenitude completa, um prazer existencial intenso em ser absurdamente
mau, Foi uma sensação plena e completa, eu testei o meu poder e vi que era
absoluto. Mas curiosamente não matei ninguém ali, não fiz nada de cruel, apesar
de sentir essa crueldade em mim e a capacidade total de destruir todo o Cosmos.
Eu contentei-me em rachar o chão, pois logo depois disso voltei gradativamente
e serenamente a ser eu mesmo. Mas pensando no que você disse, claramente existe
essa dualidade, treva e luz conectando-se. E vou refletir ainda profundamente para
buscar os significados mais significativos para mim dessa parte da experiência.
7- Como anjo com as asas, se sentiu incompleto: meio anjo, meio humano e certo
estranhamento; já como demônio sentiu plenitude completa, poder e prazer.
Sentiu também um receio inicial se relataria (na entrevista) estar à vontade
sentindo-se mau. Parece-me que você está sendo mais bem sucedido como demônio
do que como anjo (risos). É isso?
Uma questão sagaz, se fizermos uma leitura literal dessas duas partes
concatenadas podemos chegar realmente a tal conclusão, e gosto dela. Pois acho
que reflete sim um pouco da realidade que vivo. Eu tenho uma boa relação com
minha sombra, tenho serenidade em aceitá-la e trabalhar com ela, mas como todo
buscador transcendente o objetivo maior é iluminar-me, como os grandes avatares
que estiveram no planeta. Obviamente estou ainda muito longe desse ponto.
Trabalhar a sombra é fundamental para alcançar o "Satori/Nirvana",
mas é necessário também trabalhar profundamente os aspectos luminosos, e neles
ainda tenho muito a avançar, sou um pássaro em aprendizado de voo, mas voarei,
sei que no momento certo voarei, não tenho pressa, sigo sereno e focado.
8- E como foi o restante da experiência? O que você destaca de especial
em tudo que vivenciou desta vez?
Ressalto que foram 3 horas de
respiração, muitas outras visões e sensações foram experienciadas, mas para a
nossa entrevista estou destacando 4 momentos que considero chave na experiência
- momento como ave, momento como demônio, momento como espermatozoide, momento
ouroboros -, sendo o quarto, no ciclo final, o mais importante para mim. Depois
de tornar-me um soberbo demônio, voltei gradativamente ao normal e tive uma
sequência de experiência fetal, nessa hora me enrolei realmente no colchão
nessa clássica posição. Eu sentia-me como um feto em um ovo, inclusive minhas
costas pareciam estar encostadas na casca espessa, sentia que eu tinha um bico
também, ou seja, era um ovo de algum tipo de ave. Passei um bom tempo assim,
dentro do ovo, em absoluto silêncio, sentia como se muito tempo estivesse
passando, eras até. Depois de algum tempo - curiosamente não me vi romper a
casca do ovo - voltei à posição tradicional. Retomei a respiração profunda e em
pouco tempo eu me sentia como uma espécie de ave aquática, mas não era um
pinguim, parecia mais com um ornitorrinco, algo assim. O corpo era escuro e
tinha o bico longo e fino. Nessa hora virei-me de bruços no colchão e, segundo
relatos, comecei a fazer movimentos como os de uma serpente.
Mas na verdade eu estava nadando,
inicialmente em um lago com muita vegetação aquática e peixes. Continuei
nadando internamente, algo me fazia aumentar a velocidade. Logo me transformei
em um peixe pequeno e continuei aumentando a velocidade, aí já era uma espécie
de ameba. E outras amebas estavam nadando comigo. Parecia que tínhamos a missão
de chegar a algum lugar. Era claramente uma disputa. Eu dava ali todas as
minhas forças, intensidade absoluta. Quem viu a cena disse que eu serpenteava
alucinadamente no colchão e tiveram que colocar proteção de almofadas ao meu
redor e eu batia com a cabeça na direção da parede. Em minha experiência
visionária, de repente eu senti que venci, e vi todos os outros ficando para
trás. Era um vencedor, mas por incrível que pareça, tive uma sensação horrível,
de perda, de tristeza suprema, voltei a deitar-me no colchão de costas e
coloquei as mãos no peito, parecia sentir uma tristeza lancinante que doía no
meu coração, doía muito, um peso no peito. Naturalmente comecei a chorar, chorei
muito nessa hora, copiosamente. Vivi um nigredo profundo da alma, sentia
absurda desolação. Algum tempo depois de ter chorado muito, fui me acalmando,
sentia ainda forte pressão no peito, mas o choro foi diminuindo. Já estava
próximo da fase final da experiência, e foi então que aconteceu o momento mais
assustador e poderoso dessa viagem.
Continuei respirando intensamente,
queria mudar o fluxo da experiência, sair daquela crise. De repente a minha
atenção que estava focada na sensação extrema de peso no meu peito desviou-se
para meus braços e mãos, sentia que eles estavam pulsando forte. Levantei a
cabeça e foquei na direção deles - lembre-se que sempre estive com a venda, ou
seja, continuava de olhos fechados, mas realmente movia a cabeça e o corpo como
tenho relatado - tomei um susto, pois no lugar de braços eu tinha duas
serpentes. As mãos eram as suas cabeças. As duas se entreolhavam e colocavam
para fora suas línguas bipartidas. Senti um pouco de medo quando se viraram e
me olharam profundamente nos olhos. Eram grandes, enormes sucuris, e faziam
parte de mim. Tentei controlar meus braços e senti que não tinha domínio sobre
eles. E de repente as duas começaram a se estranhar. A da direita, em um
aparente golpe de sorte, conseguiu morder e colocar parte da cabeça da cobra da
esquerda em sua boca e aí foi uma das sensações mais estranhas que já tive na
minha vida, pois ela começou literalmente a comer a da esquerda engolindo-a, só
que a extensão dela era o meu corpo, e a cobra engolidora também era parte do
meu corpo. É impossível descrever a estranha sensação de ser completamente
devorado por mim mesmo. E no fim já não restava mais absolutamente nada, eu fui
sumindo por completo, eis que depois disso, eu senti uma das sensações mais
sublimes que já vivi em uma experiência transcendente. Eu simplesmente provei
do nada, da completa inexistência. E não existir era algo absolutamente pleno,
de uma beleza impossível de ser retratada com qualquer forma de linguagem.
Estava em completo êxtase por não existir! É um completo paradoxo essa frase,
como algo que não existe pode sentir? Mas não tenho outra maneira de explicar
com palavras. Foi algo de uma dimensão muito profunda, provei a tessitura do
nada, do magnífico e sereno nada. Inclusive algum tempo depois, na parte final
da sessão, quando fomos relatar a experiência, ao lembrar-me da tal sensação,
chorei, e na verdade, agora, ao escrever isso e tentar retomar tal sensação
também estão escorrendo lágrimas em minha face. Foi algo de extremo significado
para mim, impossível quantificar o impacto disso em mim a longo prazo, mas o
que realmente importa é ter vivido em meu ser aquela sensação plena.
Foto: IV Sacerdotisa
9 - Mas esse choro é pela sensação de se auto devorar ou de não existir?
Talvez um vislumbre do verdadeiro Tao, de um paraíso diferente, o paraíso do
não ser. Pela inexistência, é um choro de alegria, de extrema alegria, um choro
de júbilo! O poder da experiência é que, sem querer desmerecer a importância
dos sonhos, você vive na pele e ali, você tem consciência da realidade
ordinária naquele momento, mas se abre para essa realidade suprema, Cósmica. É
algo completamente vívido e real! É uma realidade paralela em que estive de
corpo e alma, completamente. É tão real para mim quanto o passeio que dei com
meus cães essa manhã. Depois dessa sensação relatada, na qual fiquei espalhado
no colchão, segundo relataram, voltei à consciência ordinária e me deitei
normalmente no colchão. Retomei a respiração profunda novamente, passei
restante do tempo sentindo minhas mãos e pés muito quentes, pareciam até
ferver, e era um dia frio. Coloquei as mãos no peito para aquecê-lo, elas
pareciam pulsar no ritmo da música ao esquentarem meu peito, ainda sentia um
certo incômodo nele, que perdurou por algum tempo até depois da experiência,
mas estava sereno, tranquilo, sentindo-me enlevado.
10 – Em parte do seu relato parece que você viajou por eras e existências até
se tornar um espermatozoide no momento da fecundação. E depois disso, você se
tornou um feto, você nasceu?
Não, primeiramente eu fui uma espécie de feto em um ovo, e depois como
ornitorrinco em meio aquático fui me transmutando em criaturas aquáticas até
tornar-me algo próximo a um espermatozoide. O fim da viagem foi a chegada ao
óvulo, ao que me parece. E essa pretensa vitória causou-me a tristeza
desesperançosa. A princípio, ao pensar nessa parte da experiência, imaginei que
pudesse ser alguma forma de culpa, sentir-me culpado por vencer e deixar tantos
morrerem, mas na verdade a sensação não era de culpa, era de desesperança profunda.
11 - Na primeira experiência, você relatou uma certa conexão entre os
participantes da sessão em que as vivências pareciam em certos instantes se
entrecruzarem energeticamente. E nesta segunda experiência, houve alguma
conexão entre sua vivência transcendente e a experiência dos demais presentes?
A sensação de uma egrégora se estabelece desde o princípio quando é feito o
acordo tácito entre todos de não revelar as identidades dos presentes, e logo
após cada um se apresenta e fala sobre si mesmo, suas motivações e
inseguranças. Esse lado terapêutico provoca naturalmente uma relação de
irmandade e todos ali estão buscando experiências de superação e
transcendência. Então é possível sentir esse profundo laço energético, mas não
percebi dessa vez claramente nenhuma sincronia de percepções entre os
respirantes. No entanto, a energia geral do local era de grande conexão
positiva entre todos.
12 - Uma dúvida: a respiração profunda é feita no começo da sessão, e depois
vocês vivenciam essas viagens sem retornar ao ato de respirar profundamente? Ou
seja, ao entraram neste estágio de consciência expandida cessa a
hiperventilação?
A questão da hiperventilação é muito pessoal. Às vezes quando você inicia uma
das viagens da experiência já hiperventilou o necessário para que ela flua,
noutras vezes você está vivendo a experiência e passa a respirar normalmente,
mas sente que precisa voltar a hiperventilar-se para avançar a outro estágio.
Já em outros momentos, como, por exemplo, na minha corrida como ornitorrinco-peixe-ameba-espermatozoide,
você não para de hiperventilar-se, a sensação de adrenalina e de perigo
iminente naturalmente te faz seguir respirando profundamente!
13 - E as criações artísticas desenvolvidas durante a experiência? Conte-nos
sobre a produção referente aos processos criativos em arte visionária
relacionada à pesquisa de doutorado de Matheus Moura. Como foi o processo e no
que resultou?
Logo após ter concluído a respiração,
segui imediatamente para a sala onde quem passou pela experiência deve desenhar
uma mandala, só que eu tinha levado papel e canetas nanquim, pois o desejo era
produzir ali uma história em quadrinhos, e foi o que fiz. Não tinha muito
tempo, menos de meia hora e me propus a resumir em 3 páginas a sequência de
imagens de impacto que demarcaram os 4 momentos chave da experiência. Tive que
desenhar diretamente com nanquim sobre papel, sem rascunhos prévios, e
obviamente trabalhar com tão pouco tempo compromete um pouco o detalhamento dos
desenhos, mas isso não era o mais importante nesse caso. Assim, ainda sobre
forte impacto da experiência, desenhei a primeira página retratando o
Ciberpajé-pássaro que se torna um demônio e depois racha o solo com sua força.
Na segunda página retratei o ovo-feto e a corrida aquática para a sobrevivência,
incluindo o esfacelamento pessoal ao final - representado por um rosto
desesperado com o crânio explodido. E finalmente, na terceira página retratei
os dois braços serpente em sua luta. Depois de desenhar tudo, - destaco que
Matheus entrou na sala e acompanhou a criação dos desenhos -, pedi a ele que me
mostrasse o que tinha escrito. Foi incrível o casamento de seu texto com as
imagens, já que ele tratava da necessidade da solidão para o encontro com o
Cósmico. Assim o seu texto tornou-se a parte textual dessa HQ
poético-filosófica de 3 páginas criada completamente dentro da sessão de
Respiração Holotrópica. A história em quadrinhos conectou nossas duas
experiências, gerando algo sincrônico e inesperado. Esse processo criativo
inusitado e rico será relatado na tese de Matheus Moura e a HQ é parte da
produção artística de seu doutorado em arte e cultura visual, e será incluída
na publicação de uma revista ou álbum que acompanhará a tese.
Página 2 da HQ produzida pelo
Ciberpajé (desenhos) e por Matheus Moura (roteiro) na sessão de Respiração
Holotrópica.
14 - Você já realizou processos criativos com estado alterado de
consciência algumas vezes. Você parece ir em busca, visceralmente, de um
mergulho para dentro e para fora de você. Por quê?
Em minha concepção, a viagem mais
importante e transformadora é a do autoconhecimento, a descoberta das múltiplas
dimensões que nos compõem, o mergulho nos abismos incomensuráveis do ser.
Vivemos em um mundo dominado por valores decadentes, todos com base no hiperconsumo
e no poder. As pessoas distanciam-se cada vez mais de si mesmas e seguem
condutas de rebanho, mesmo com o esfacelamento da cultura em milhões de tribos
ideológicas, as pessoas ainda sentem extrema necessidade de estarem em um
desses grupos. Assim cometem suicídio interior ao consentirem com a destruição
gradativa de sua individualidade para servirem às ideologias de seus grupelhos.
É importante não confundir individualidade com individualismo, o segundo está
muito mais ligado ao sentido de ser alguém apartado do todo e por isso egoísta.
O individualista joga sua individualidade no lixo, para alimentar seu ego, em
busca da aceitação dos outros e de um falso amor. Ele necessita ser amado pelos
outros, pois não consegue amar-se, e essa necessidade é egoísta e egoica, então
mesmo dentro de seu grupelho, todas as suas relações são barganhas; ele é um
egoísta que joga o jogo do grupo visando ser amado e aceito. Ao agir assim já
está completamente morto interiormente, é um zumbi com alto potencial de
destruição dos outros e do planeta, nada mais lhe importa a não ser ele mesmo.
Joga o jogo do grupo para simplesmente conseguir um falso amor e respeito, mas
não existe mais nele qualquer consciência de irmandade, conexão com sua
espécie, ou com as demais espécies que habitam o planeta, muito menos com sua
dimensão Cósmica. Em sua mente perdida ele acha que a vida é ELE CONTRA O
COSMOS, não ELE EM CONEXÃO COM O COSMOS. Tudo isso é resultado do afastamento
gradativo do homem de si mesmo, de suas dimensões profundas, da verdadeira
transcendência que não pode ser encontrada nas religiões. As religiões são
estagnadas, e vivem de ludibriar e prometer futuros paraísos, não existe mais
nada de absolutamente transcendente nelas. Nunca conheci uma única pessoa
dogmática que vislumbrou uma experiência realmente transcendente no seio dessas
seitas. O sentido de unidade está sendo completamente perdido, ainda existem
raras pessoas buscando-o, eu sou uma dessas pessoas. Todo o meu esforço como
ser e como artista é o de buscar ser eu mesmo, e para isso preciso realizar
esse mergulho interior que na verdade é um mergulho Cósmico, já que
parafraseando Stanislav Grof:
"Somos hologramas do
Cosmos!"
15 - Como a arte se tornou um caminho para essa busca? Ela é a forma
como sua alma se expressa nesse mundo?
A arte tem um potencial grandioso
como linguagem múltipla que explora as subjetividades, ela vai na contramão do
cartesianismo que assolou o mundo nos 3 séculos recentes. Ela permite que a
essência abissal Cósmica seja expressada visceralmente como nenhuma outra
ferramenta humana permite. As ciências ditas naturais mataram todo e qualquer
resquício de dimensão transcendente, o mesmo aconteceu com as ditas ciências
exatas, com exceção da física teórica que tem permitido algumas aproximações
com o misticismo, justamente nos pontos não solucionáveis e paradoxais, mas
ainda é muito pouco para convencer a sociedade dessa dimensão. As ciências
humanas estão perdidas e engessadas em milhares de ideologias e grupelhos que
se odeiam e se hostilizam constantemente, não existe nelas a mínima
possibilidade de uma reconciliação que permita voltar as investigações para
aspectos transcendentes, quando aparecem são de forma muito pontual e quase
sempre equivocada. Mas quanto falo da arte, falo da arte em sua perspectiva
transcendente, da arte como canal de diálogo com o Universo. Infelizmente a
arte contemporânea contaminou-se pelo discurso das ciências humanas, pelo
pragmatismo marxista que destrói toda e qualquer possibilidade de
transcendência e transforma a arte apenas em panfletarismo ideológico, ou
egocentrismo patológico. Infelizmente a arte contemporânea acadêmica morreu, é
algo esvaziado de sentido que mantém um diálogo mínimo só com os microcircuitos
acadêmicos e de curadores intelectualoides. A sociedade não dá mais a mínima
para essa arte produzida na universidade, acha-a enfadonha e vazia, o que é uma
realidade, e os artistas perdem a chance de realizar alguma transformação
interior na essência desse mundo. Assim a população volta-se completamente para
o entretenimento vazio e considera-o arte. Mas os ditos artistas não se
importam, continuam fechados em seus guetos pedantes e ridículos. Praticamente
toda a arte contemporânea, em minha modesta visão, é lixo absoluto, deveria ser
literalmente recolhida pelos caminhões de lixo e despejada em seu lugar de
destino. A arte de que trato e na qual me insiro, é a da transcendência, da
busca pela transmutação interior visando a ampliação da consciência. Assim,
toda obra artística que crio é um ritual pessoal de autotransformação, visando
minha cura completa, buscando alcançar minha integralidade. Um possível belo
efeito colateral dela é auxiliar outras pessoas a encontrarem esse caminho
transcendente.
16 - Qual aprendizado você extraiu dessa experiência e como ela se encaixa na
cadeia de experiências de criação artística sob efeito de técnicas visionárias?
Eu tenho por hábito não transformar
tais experiências com técnicas e substâncias que ampliam a consciência em algo
trivial, por isso prefiro fazê-las com muita parcimônia. Tenho visto pessoas
estragarem todo o potencial de tais vivências transcendentes ao fazerem uso
desses métodos de forma indiscriminada e em curtos espaços de tempo,
utilizando-os quinzenalmente, semanalmente e até diariamente. Ao trivializar o
uso, você esvazia-o de sentido. Muitos inclusive passam a relatar que já não
sentem mais nada após um período de superexposição a essas técnicas ou aos
enteógenos. Insisto que devem ser experienciadas com um bom período de tempo
entre elas, tenho aguardado até mais de um ano entre uma experiência e outra, e
o tempo mínimo que já realizei entre elas foi de um mês, mas isso aconteceu só
duas vezes. Minhas duas experiências mais recentes com o cogumelo Psilocybe
Cubensis tiveram espaço de cerca de 2 anos entre elas (Ler entrevista: http://ciberpaje.blogspot.com.br/2014/06/entrevista-com-o-ciberpaje-viagem.html). A
primeira Respiração Holotrópica que realizei também foi a cerca de dois anos.
Nesse momento e pontualmente, devido à pesquisa de doutorado de Matheus, da
qual sou orientador, realizarei experiências com uma maior frequência, mas esse
não é e não será o meu padrão. Eu preciso de um longo tempo para refletir e
maturar interiormente cada experiência, só assim ela atinge o seu potencial
realmente transformador em mim. Digo isso para salientar que ainda é muito cedo
para extrair algum aprendizado mais específico da experiência. No entanto, as
sensações que foram experimentadas são incríveis por sua unicidade no contexto
de minhas experiências de consciência ampliada e com certeza terão impacto em
minha integralidade como ser. Essa vivência foi única e significativa como as
anteriores, mas com uma profundidade maior em certos aspectos. Outros trabalhos
artísticos surgirão diretamente inspirados nela, já estou elaborando-os ainda
sob o impacto profundo da experiência de ontem!
Foto: IV Sacerdotisa
IV Sacerdotisa: Enquanto na primeira
experiência com a respiração (leia aqui a primeira entrevista), as sensações
tiveram um viés mais luminoso, nessa segunda mesmo com as nuances mais leves, a
meu ver, teve um caráter de mergulho no nigredo, obscuro. Isso pode ser verificado
nas próprias criações frutos da primeira e segunda experiência. Entretanto,
cada oportunidade de vivenciar tais sensações e aprofundamento no conhecimento
de si mesmo é valiosa, compreendendo sempre que somos luz e sombra, e cada
faceta não existe sem a outra! Agradeço muito, mais uma vez, a
oportunidade de poder te entrevistar, te conhecer um pouco mais e aprender,
disseminando suas ricas experiências com o mundo.
Ciberpajé: Minha gratidão a você, IV Sacerdotisa Danielle Barros, que cuidadosamente e entusiasticamente tem se dedicado a elaborar essas entrevistas comigo, sempre com questões sagazes e que me fazem adentrar por aspectos ainda não refletidos sobre elas. Aproveito para agradecer também os psicoterapeutas Álvaro e Dora Jardim, a Matheus Moura, a todos os que estiveram presentes na sessão de Respiração Holotrópica e também ao Conselho de ética da Universidade Federal de Goiás, que teve a sensibilidade para perceber a importância e o pioneirismo de nossa pesquisa. Um Abraço Cósmico do Ciberpajé!
*Danielle Barros é IV Sacerdotisa da Aurora Pós-Humana, poetisa, desenhista, doutoranda em Ensino de Biociências e Saúde, Mestre em Informação e Comunicação em Saúde (Fiocruz) e compõe o grupo de pesquisa CRIA_CIBER da FAV/UFG. Blog: http://ivsacerdotisa.blogspot.com.br/
**Edgar Franco é o Ciberpajé, artista transmídia, pesquisador e professor da UFG, pós-doutor em arte e tecnociência pela Universidade de Brasília (UnB), doutor em artes pela USP, Mestre em Multimeios pela Unicamp e arquiteto pela UnB. Franco se declarou Ciberpajé em seu aniversário de 40 anos, através de um método de transmutação e renascimento inventados por ele tendo como base seu universo ficcional da “Aurora Pós-humana”. Esse universo lhe permite criar em múltiplos suportes como: games, quadrinhos, aforismos, ilustrações, instalações, performances artísticas e músicas.
Links das entrevistas realizadas com o Ciberpajé: