A IV Sacerdotisa Danielle Barros* conduziu entrevista exclusiva com o Ciberpajé sobre o processo criativo magísticko do novo single do Posthuman Tantra, “Transhuman Baphomet's Cult”, lançado pelo darknet label Necromancia.
Ciberpajé fotografado por Luiz Fers
IV Sacerdotisa: Gostaria de saber como surgiu a ideia de criar um single com o tema/nome Transhuman Baphomet's Cult? Qual o conceito do single?
Ciberpajé: O meu processo criativo é sempre algo espantoso e inusitado. Não costumo estabelecer limites para o que vou criar e sempre permito que as imagens, signos, sons e sensações fluam do inconsciente sem amarras, trata-se de um processo muito mais intuitivo do que racional. No entanto, isso não significa que não utilizo certos métodos e procedimentos. Curiosamente, no caso desse single, tudo começou com experimentos em um novo sintetizador que adquiri, criei muitas linhas sonoras, experimentei bastante, e percebi algo inusitado, as faixas estavam com um certo ar “dançante”, algo que nunca aconteceu com o Posthuman Tantra. Bem, então decidi compor algo para um single, mas quando toquei as primeiras notas, que me vieram espontaneamente, a atmosfera do local mudou de vibração, foi estranho, coloquei a sequência de notas para tocar em loop e senti uma densidade obscura no ar, imediatamente me vieram como um flashback as sensações e visões de horror que experimentei no início de uma recente experiência de ENOC com o Psilocybe cubensis (leia entrevista com relato completo dessa experiência aqui). Os seres das sombras que me perseguiram na experiência, durante esse novo vislumbre, tiraram seus véus, e eles tinham uma imagem que mixava algo do Baphomet de Eliphas Levi com os seres transgênicos de David Cronenberg. Obviamente não vejo o Baphomet com o preconceito judaico-cristão que o demoniza, percebo-o com sua força equilibrante e harmonizadora das dualidades que geram conflitos. É um ícone da busca transcendente, mas nesse caso específico, o novo aspecto orgânico-mutante da entidade lhe tirou o viço e deixou-a realmente grotesca. Um obscuro Baphomet Transumano estava diante de mim. Qual sentido disso, porque essa imagem veio a mim? Sei que nada é ao acaso. Assim, a partir dessa visão, a concepção da música veio com força, criar um ritual mítico mágicko de exaltação, invocação e incorporação dessa criatura arquetípica nova. Imaginei um culto imemorial ao Baphomet Transumano, e a faixa é a versão sonora subliminar desse ritual e seus significados essenciais para minha transmutação.
Como você destacou, essa obra foi inspirada em sua experiência mais recente com o cubensis. Queria saber por que você exalta também -além das sensações de êxtase- as sensações obscuras vivenciadas pela viagem psiconáutica, tendo em vista que muitas pessoas que experienciam sensações sombrias nessas viagens preferem não comentar/relembrar? Qual a importância/motivo pelo qual você também celebra essa faceta obscura da experiência?
Talvez vivamos em uma das eras mais cruéis e sanguinárias da espécie humana. Apesar de milênios de civilização e de um pretenso progresso material e tecnológico, seguimos como neandertais, mais competitivos, territorialistas e odiosos do que nunca. E grande parte das atrocidades e genocídios cometidos, ao longo da história humana e na contemporaneidade, são fruto de ações ditas DO BEM, geradas pelo fanatismo e dogmatismo religioso e ideológico, sempre com uma “maquiagem” falaciosa de estarem agindo em nome de Deus, ou de um “bem maior”! Esses dogmas e ideologias possuem regras de conduta moral, leis que devem ser seguidas e que ignoram completamente o aspecto animal e instintivo do ser humano, obrigando todos a negarem e obstruírem seus instintos biológicos e também a eclipsarem suas sombras. Vendendo uma ideia equivocada de que podemos ser criaturas maniqueístas, ou seja, absolutamente a serviço do bem, e imaculados. Assim, qualquer vislumbre da sombra é encarado como algo pecaminoso, perigoso, maldito, mas nós somos seres complexos, feitos de sombras e luzes que se integram, e que em harmonia permitem o equilíbrio. Por isso, ao negarmos nossos aspectos obscuros, nossas sombras profundas, estamos na verdade destruindo a possibilidade da totalidade, de sermos integrais e iluminarmo-nos. Se você aceita que odeia, que tem raiva, que sente dor, e desejos de poder e outros considerados amorais, se encara esses sentimentos como parte integrante de seu ser, você pode transmutá-los! Um dos caminhos para essa transmutação rumo à iluminação é a magia ritual artística. Por isso devemos valorizar com o mesmo peso nossas experiências de êxtase, de paz, de nirvana, e de dor, de ódio, de raiva, de medo, de horror, são a essência que forja o ser integral. Na escuridão interior encontramos as chaves que abrem os portais da luz. Perceba que mesmo a geração “nova era namastê” finge um estado de pseudo serenidade eterna forçado, por isso tantos gurus são abusadores grotescos, ao negarem o desejo de poder e fama, e os desejos naturais sexuais, acabam sendo tragados por eles, tornando-se criaturas perversas e pérfidas. A arte é para mim um exercício ritual de transmutação a partir da incorporação de todos os aspectos de meu eu profundo, e as sombras são fundamentais nesse processo. No caso dessa experiência específica com o cubensis, vivi um terror indescritível que levou-me a um medo de mim mesmo, na verdade vislumbrei algumas sombras densas de meu self que jamais havia imaginado, essas sombras personificaram-se na imagem grotesca do Baphomet Transumano, então esse ser icônico mágicko tornou-se parte de minha sombra que devo compreender, aceitar, reverenciar e transcender.
Ciberpajé fotografado por Luiz Fers
E o ritual em si. Como foi o processo criativo ritualístico desse single?
Alguns detalhes do ritual prefiro manter sigilosos pelo seu caráter pessoal. A sequência de notas inicial ficou gravada no sintetizador, e no início serviu de mantra sonoro para a visualização do culto imemorial da criatura. Somado a isso, a base para a gravação partiu de um processo de impregnação visual em meu estúdio/templo, no qual cerquei-me de algumas imagens que relacionam-se ao Baphomet Transumano, incluindo muitos rascunhos e desenhos meus criados a partir da experiência com o cogumelo. Também realizei um exercício de desenho automático induzido pelo som mântrico. Daí em diante mergulhei corporificamente com todos os meus sentidos, na experiência de ser um iniciado nesse culto ancestral e de dedicar-me com amor a essa divindade grotesca. Esse processo de imersão durou 3 dias, e sempre terminava na hora crepuscular, início da noite. A composição Transhuman Baphomet's Cult reproduz o clima mágicko do ritual que experienciei com um grupo de cultuadores, e foi composta e gravada como parte do rito artístico mágicko e mítico-arquetípico.
Gostaria de saber mais sobre os aspectos simbólicos do single, desde o nome, a duração 4:05, dos elementos sonoros utilizados, e as simbologias na arte da capa?
O título do single e da música é um reflexo direto e ipsis litteris da imagem vislumbrada e ritualizada no culto da entidade obscura “Baphomet Transumano”. O sentido simbólico dessa criatura mítica relaciona-se diretamente ao meu sistema mágicko da “Aurora Pós-humana”, conectando o equilíbrio hermético (Caibalion) intrínseco à iconografia do Baphomet, com o desequilíbrio contemporâneo perpetrado pela hipertecnologia, pela hiperinformação e pela transgenia, ameaças à espécie humana e geradoras da sexta extinção massiva de espécies em nosso planeta. Ao compreender a essência desse ser transgênico mítico, posso adentrar os meandros do que esses aspectos obscuros significam para mim e como lidar com eles de forma mais sagaz e não só destrutiva e preconceituosa. Obviamente essas simbologias mais profundas só têm sentido para mim, criador e executor do ritual de transmutação artístico. O tempo da faixa 4:05 minutos, se somarmos dá 9, o número que mais se afasta da unidade, a desintegração, a sombra mais intensa necessária para o retorno à unidade, o mergulho no abismo, o nigredo alquímico. A capa foi criada a partir de duas ilustrações esboçadas com a experiência visionária com o Psilocybe cubensis, resgatei-as e mudei alguns elementos sutis em ambas, usando uma delas para demonstrar o aspecto de culto e devoção, e a segunda para definir a geração fetal cósmica desse Baphomet Transumano. A arte da capa conecta-se diretamente à música e durante a mixagem final tive um transe especial fitando-a enquanto ouvia a música. Alguns elementos sutis foram utilizados na música e para sua fruição completa aconselho ouvi-la com fones de boa qualidade, utilizei o ritmo cardíaco médio de 72 BPM, e certos efeitos subliminares em baixas frequências para ressaltar a força obscura do culto, gravações de sons que prefiro não revelar. A faixa foi composta e gravada em sintetizadores, e controladores midi, e envolveu a gravação orgânica de vozes e também sua síntese. Um detalhe importante foi a escolha do selo para lançar o single, o darknetlabel Necromancia, dedicado à música das sombras! O Necromancia é capitaneado pelo lendário musicista e ativista da cena darkwave brasileira, o mato-grossense André Gorium.
Ciberpajé fotografado por Luiz Fers
Você sempre diz em suas palestras e entrevistas que a arte é um processo de cura. Queria saber especificamente, como ocorre esse mecanismo de transformação, como a criação desse single contribuiu para seu processo de cura interior? Que cura é essa?
Como sempre digo, a recepção às minhas obras é um presente, uma sobremesa saborosa, mas ela nunca será sua finalidade. O real objetivo de minhas criações é o processo criativo em si, que funciona como um ritual de autocura em busca de minha integralidade. O que é essa cura? É a capacidade de ACEITAR-ME INTEGRALMENTE, assimilar minha sombra por completo, entender quem eu sou, perdoar-me e ter a capacidade de amar-me sem nenhum obstáculo, seguir meu coração, meus instintos animais, minha selvageria, meu amor intrínseco à vida, abdicar e abolir tudo aquilo que me foi imposto pela cultura, pelos meus pais, professores, pela sociedade, tudo o que for uma mentira e não fizer parte essencial de meu ser. Ao desenvolvermos esse autoamor, criamos também a capacidade de amar a todos, uma profunda empatia e amorosidade que se espalha pelo universo inteiro, o chamado amor cósmico! Ao criar ritualisticamente o Baphomet Transumano compreendi, incorporei e transcendi aspectos fundamentais de minha sombra, dando mais um passo rumo à integralidade.
* Danielle Barros é a IV Sacerdotisa da Aurora Pós-humana, artista multimídia, doutora em ensino de biociências e saúde pela Fiocruz, mestra em informação e comunicação em saúde pela Fiocruz/RJ, bióloga pela UNEB e professora Adjunta da UFSB (Campus Paulo Freire). Conheça o blog A Arte da IV Sacerdotisa
Ouça o single "Transhuman Baphomet's Cult" nesse link, ou clicando na arte da capa abaixo.