Entrevista do jornalista José Guilherme Abrão ao
Ciberpajé Edgar Franco, para o jornal O Hoje, de Goiânia.
01 -
"De Volta para o Futuro 2" é mais um filme de comédia do que um
sci-fi, mas podemos dizer que a representação do futuro dele traz algum
significado para a sociedade de 1989 e também para a de hoje?
Edgar
Franco (EF) - A ficção científica (FC) é um gênero muito subestimado na
cultura ocidental, considerado algo menor pelos intelectuais acadêmicos
e fruto das manifestações rasas da cultura pop. Infelizmente esse é um
erro grosseiro. A narrativa de FC tem potenciais ilimitados e
possibilidades muito singulares, uma delas é esse caráter antecipatório
que provém das especulações com possíveis avanços tecnocientíficos.
"De Volta para o Futuro 2" é um belo exemplo desse caráter
antecipatório, e nesse sentido foi uma produção significativa.
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Imagem do Filme De Volta para o Futuro - Universal Pictures |
02 -
Tecnologicamente, muita coisa vista no filme nós já temos hoje em dia,
como reconhecimento por voz e toque, televisão fina e de tela plana,
tablets e outras a caminho, como próteses cibernéticas e biocombustível.
Muito disso no filme é tratado como coisa dos Jetsons, fora da
realidade. É estranho que ao menos parte dessa tecnologia hoje seja
real? Como o sci-fi faz isso, de prever tecnologia?
EF -
Quando falamos de FC antecipatória, não percebemos que a FC não só
prevê, na verdade ela INSPIRA os criadores. Muitos criadores desses novos
aparatos tecnológicos são confessos fãs de FC, e com certeza se sentiram
instigados a criarem seus novos gadgets tecnológicos inspirados pelas
narrativas de FC que tanto admiram. Por outro lado, um verdadeiro
artista, um criador, funciona como "antena da raça", conseguindo
antecipar consequências, antes das causas. O comunicólogo canadense
McLuhan percebeu e mapeou esse fenômeno.
03 -
Nas suas pesquisas, você chegou a estudar esse filme? Um ponto interessante
é que o filme não é distópico ao contrário de muitos dos anos 1980. Por
que será que optaram por essa versão Jetsons do futuro? No que eles mais
acertaram e no que mais erraram?
EF -
Existe uma tradição cinematográfica da FC distópica. O primeiro grande
filme de FC é sobre uma distopia futurista que metaforiza brilhantemente
as sociedades atuais hipercapitalistas. É Metrópolis, de Fritz Lang, uma
película ainda atualíssima. Assim a FC cinematográfica nasceu com esse
estigma distópico, mas ao longo das décadas múltiplos subgêneros de FC
floresceram. Viagens intergalácticas marcadas por aventura, o drama de
mestres como o russo Tarcovsky em Solaris e Stalker, o horror
intergaláctico, como em Alien, de Ridley Scott, e a comédia, que tem
como um dos marcos dos anos 80 a série De Volta Para o Futuro. As
distopias na verdade nasceram do medo humano da tomada de seu espaço
pelas máquinas. Tudo começou com o operário mártir Ned Lud que, segundo
o mito, destruiu uma máquina de tecelagem às marteladas. Seu nome serviu
de inspiração ao Ludismo, movimento que eclodiu na Inglaterra
industrialista em 1811 e era estruturado sobre o ódio às máquinas. Sua
ação resultou em vários casos de ataque e destruição de máquinas. A
coisa ficou tão seria que instituiu-se a pena de morte para aqueles que
realizassem tal ato. Perceba como uma das grandes fontes das FCs
distópicas é a Inglaterra, com obras clássicas como A Ilha do Dr.
Moreau, de H.G.Wells; 1984, de George Orwell; e Admirável Mundo Novo, de
Aldous Huxley. Os EUA do pós-guerra começaram a ter uma relação muito
positiva com todas as traquitanas tecnológicas, é de lá que vem pensadores
que acreditam nos avanços tecnológicos como panacea para todos os problemas
humanos - incluindo aí o alcance da vida eterna através da tecnologia,
alguns dos mais conhecidos e controversos são Ray Kurzweil, Hans Moravec
e Nicholas Negroponte. Então, no pós-guerra começaram a surgir muitos
exemplos de FCs positivas, apresentando uma relação harmoniosa do homem
com a tecnologia, e muitas vezes até inocente. O filme, De Volta para o
Futuro 2, é uma comédia leve que acerta e prevê muitos dos aparatos
tecnológicos que existem hoje, mas como visão de mundo e sociedade é
totalmente pautado pelos valores consumistas e alienantes do
"American Way of Life" que vicejou naquela nação a partir da
década de 1950.
Imagem de Metrópolis, de Fritz Lang
(1927)
Capa do livro "A Ilha do Dr. Moreau, de
H.G.Wells
Capa do livro 1984, de George Orwell
Cena do filme Solaris, do diretor russo
Tarkowsky (1972)
Cena do filme Alien, de Ridley Scott (1979)
04 - O filme também arrisca em termos de moda e
comportamento e até prevê a nostalgia dos anos 1980 que temos hoje.
Claro, que numa piada, mas é possível prever esses fatores?
EF -
Nesse caso é fácil sim prever tal nostalgia. Eu sou da geração que
cresceu nos anos 1980, em 1989 eu tinha 18 anos. Ou seja, minha formação
como indivíduo e meu entendimento do mundo foram cristalizados nessa
década. E essa geração dos anos 80, agora está na casa dos 40 anos, esse
é o auge financeiro dessas pessoas, é a faixa etária que ascendeu a
postos no trabalho e tem condições maiores de consumir, já com casa
própria, carro e com algum dinheiro sobrando pra investir em coisas
bestas e retrô que REMEMOREM o período de sua formação como indivíduo,
ou seja, os anos 1980, quando experimentou tantas coisas novas,
provavelmente o primeiro beijo, primeira paixão, primeiras festas,
primeira relação sexual. As músicas, os programas e filmes daquela época
rememoram para o quarentão ou quarentona de hoje esse tempo lúdico e
romântico. Se eu for fazer um filme hoje e quiser PREVER qual a época no
futuro que terá nostalgia do agora, é só ver quem está na faixa etária
dos 10 aos 20 anos hoje e estará com 40 nesse futuro proposto. Acertarei
na mosca!
05 - Você acha que o nível da tecnologia do
filme ainda é uma realidade distante? Ele é possível? Por que será que
previram carros voadores, mas não conseguiram prever a internet?
EF -
Se não fosse o monopólio global das montadoras de carros e do truste do
petróleo que continuam criando máquinas totalmente retrógradas, que
funcionam com combustível fóssil ou o famigerado biocombustível - que
tem destruído todo o cerrado brasileiro com plantações de cana que
remontam ao período da monocultura do ciclo do açúcar -, já poderíamos
ter os carros voadores há décadas. Não é uma tecnologia complexa, o
problema continua sendo o dos trustes que impedem o avanço real da boa
tecnologia para manter o poder e a lucratividade. Já existem carros a
água, a ar, solares e tantos outros! Experimentos de criação de pequenos
veículos voadores já existiam desde a década de 1950, mas não ouve
investimento neles, pois a industria automobilística global não permite
isso. A Internet já tinha sido prevista na FC de Phillip K.Dick muito
antes de De Volta Para o Futuro, mas o filme é leve, voltado para a
família, e a web tem esse caráter de algo impalpável, não é uma
traquitana, é um conceito fluido, não seria algo do interesse dos
produtores de um filme nos moldes de De Volta para o Futuro 2.
06 -
Uma coisa engraçada no filme – e isso acontece em outros – é a dominação
de uma tecnologia que era novidade na época. Por exemplo, o 2015 do
filme é cheio de máquinas de fax, que eram uma revolução em 1989. Por
que isso acontece?
EF -
Uma pergunta sagaz, pois aparelhos de fax estão fadados a irem para o
museu. Mas, muito possivelmente houve um incentivo financeiro das
empresas criadoras de aparelhos de fax para o filme. Nos EUA a relação
do cinema com os múltiplos setores da indústria de bens de consumo é
grandiosa. Muitos filmes se sustentam com isso, a publicidade implícita
que ajuda a vender produtos. Acredito que esse seja o principal
motivo.
07 -
Não temos carros voadores, mas um avanço tecnológico ligado ao consumo
bombeou os anos 2000. Como você acha que será realmente os próximos 30
anos?
EF -
Sou também um artista que trabalho com a ficção científica como gênero, desenvolvi
um universo ficcional chamado "Aurora Pós-humana", um
work-in-progress criado por mim desde o ano de 1999. Para ele já criei
inúmeros trabalhos em múltiplas mídias com destaque para os quadrinhos.
Nessa minha FC, imagine um futuro em que a transferência da consciência
humana para chips de computador seja algo possível e cotidiano, quando
milhares de pessoas abandonaram seus corpos orgânicos por novas
interfaces robóticas. Imagine também que neste futuro hipotético a
bioengenharia tenha avançado tanto que permita a hibridização genética
entre humanos, animais e vegetais, gerando infinitas possibilidades de
mixagem antropomórfica, seres que em suas características físicas remetem-nos
imediatamente às quimeras mitológicas. Nesse contexto ficcional as duas
"espécies pós-humanas” tornaram-se culturas antagônicas e
hegemônicas disputando o poder em cidades-estado ao redor do globo,
enquanto uma pequena parcela da população - uma casta oprimida e em vias
de extinção -, insiste em preservar as características humanas,
resistindo às mudanças. Um trabalho recente de destaque no contexto da
"Aurora Pós-humana" é o álbum em quadrinhos
"BioCyberDrama Saga", com roteiro meu e arte de Mozart Couto,
publicado pela Editora UFG e que concorreu ao Troféu HQMIX, o Oscar da
HQ brasileira, em 2014. Nessa obra detalho minhas visões antecipatórias
em detalhes, tudo inspirado por prospecções tecnológicas. Só para
sugerir uma previsão direta, arrisco dizer que em 30 anos teremos
ampliado a possibilidade de vida para 300 anos, mas isso será possível
inicialmente apenas para as classes mais abastadas.
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Capa de Biocyberdrama Saga (2013)
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Capa externa de Biocyberdrama Saga (2013)
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Página interna de Biocyberdrama Saga
Ciberpajé fotografado por Anésio Neto
EDGAR
FRANCO é Ciberpajé, artista transmídia, pós-doutor em artes pela UnB,
doutor em artes pela USP, mestre em multimeios pela Unicamp e professor
do Programa de Doutorado em Arte e Cultura Visual da UFG. Possui obras
premiadas nacionalmente nas áreas de arte e tecnologia, performance e
histórias em quadrinhos.