Arte do Ciberpajé
Finalmente debrucei-me, amparado por meus fones em estéreo, para degustar essa obra sensacional, o EP Ciberpajé - Máquina Hiper-real (ouça-o aqui). Segue abaixo meu relato sobre a imersão nas faixas criadas em parceria pelo Ciberpajé (GO) e Hari Maia (RJ):
Um belo álbum que nos transporta inicialmente a dimensões de paz e tranquilidade, em uma psicodelia progressiva extasiante e fecha causando uma angústia existencial por sermos humanos.
A primeira faixa, como o próprio título remete, é pura perfeição. Os sons e o aforismo declamado se amalgamam harmoniosamente de maneira sublime e doce, abrindo amorosamente o caminho pra faixa dois. Uma faixa que instiga e penetra na imaginação com traços de futurismo. Me remeteu muito a uma atmosfera onírica, porém não orgânica (talvez híbrida). Algo como as reflexões e universos de Phillip K. Dick sobre sonhos surreais de androids e clones em uma naturalidade típica de nosso ritmo cotidiano. A arte da capa me remete muito a essa relação dançante e contrastante, mas complementar, entre o seco maquínico e o molhado orgânico. Uma naturalização da morte em meio a vida, ou seria da vida em meio a morte? Um paradoxo. Um passado de carne e osso envolvido por tecnologias que nos permite sobreviver em meio à um ambiente devastado por nossa própria espécie que mata o próprio habitat em um suicídio que é, de certa forma, induzido pelo sistema sem vida que cada vez mais nos imbricamos e queremos fazer parte com ostentações e competições.
A faixa três com sua atmosfera oitentista me levou a cenários sonoros de álbuns clássicos da new wave e do post-punk, com a força distópica e violadora de um mundo caótico e sem esperanças em relação ao que vem de fora, porém na intimidade acalentante e expansiva do ser consigo mesmo que tudo transforma em luz penetrante sobre as ruínas institucionalizadas. Essa sensação se materializa com o aforismo e a essencial conexão com a natureza pela lua potente que nos observa em silêncio, serena e selvagem, em meio às trevas socio-culturais que nos metemos. O outro projetado para o instinto animal que nos une ao planeta. A natureza enquanto verdadeiro e absoluto Deus visceral, essencial de nossa criação. Somos bichos. Somos natureza, mesmo em meio aos dígitos que nos cegam e iludem. A faixa flui nos abrindo os olhos e coração que pulsa até o final para essa essência que nos move.
A próxima faixa é uma ode à liberdade e a criação artística pura, desvencilhada da quantificação racional da arte. Um manifesto anti-uberização e anti-quantificação de aspectos qualitativos da existência. A arte genuína que emerge em êxtase profundo de ruídos e flutua em harmonias que, metendo os dedos nas feridas pelos ruídos, são belas e transformadoras. Uma espécie de ascensão musical daquilo que somos, não se importando os crivos alheios padronizantes e encaixotantes de estéticas predeterminadas e repletas de sufocamentos criativos. O ruído e o barulho como imposição visceral do espírito em si.
A última faixa fecha em tom apocalíptico a triste mecanização mekHanTrópica da vida, baseada em adorações egóicas e ilusões de felicidade baseadas em lucros. Uma doentia cooptação das almas frustradas por não potencializarem aquilo que transcende, mas que, ao contrário, se rendem ao controle. A aniquilação da vida por conta própria ou induzida a isso. Um aforismo altamente reflexivo que acompanhado com ruídos dos sintetizadores nos levam, pela imaginação, ao fim dos tempos...pelo menos pra espécie humana, já que o planeta, em constante metAMORfose, segue seu fluxo de transmutação continua e atemporal. Um álbum que flui da luz às trevas. Um suspiro disruptivo de humanidade em meio a tantos padrões midiáticos que transformam e idiotizam o ser humano em um processo de escravização voluntária pelo medo e pela preguiça de pensar, sentir, escolher, conectar, existir. Parabéns pela obra de resistência intrínseca, meus caros! Sigamos na trincheira pela arte! Saudações!
*Frederico Carvalho Felipe é musicista, artista multimídia, professor e doutorando do Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da FAV/UFG, em Goiânia
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