Com reflexões acerca de questões ecoadas por pensadores como Nietzsche, Freud, Jung, Sartre, Campbell, Lovelock, entre outros tantos, sobre fenômenos relativos à essência do ser, à existência, à imaginação e à materialidade da vida – mas não se limitando ao pensamento de nenhum deles –, a obra toca, de forma bastante original, em temas caros com profundidade e importantíssima iconoclastia, elucubrando poeticamente sobre os tempos atuais a partir do deslocamento conceitual à um futuro pós-apocalíptico ambientado na Aurora Pós-Humana.
São lançadas, especialmente, reflexões típicas sobre narrativas ficcionais instituídas como regime de verdade em nossa sociedade, expondo e questionando a ideia ilusória de Deus como fonte absoluta e suprema de poder, o que causa a desconexão com Gaia e a ruína total do ser-humano. O EP proporciona a imersão ambiental nessas ideias com uma atmosfera sonora intensa, letras viscerais e uma arte visual de capa shakespeariana incrível e impactante!
Tudo isso ainda ganha mais significação e dramaticidade ao conhecermos as motivações poético-filosóficas e os processos criativos que deram origem à obra, em especial, o contexto tenebroso que passamos. Uma pandemia sem precedentes administrada por um déspota genocida que boicota e combate quem tenta curar à doença, orquestrando negócios nefastos e escusos que utilizam a vida das pessoas como moeda de troca. Uma dessas vidas ceifadas, por essa máfia funesta que detém o poder, foi o amado pai de Edgar: Sr. Dimas Franco, o GranCiberpajé. Principal amigo, interlocutor filosófico, referência inspiradora e norteadora de vida do artista, ele infelizmente foi vítima desse genocídio necropolítico que vivemos.
Como já mencionado, a obra faz um deslocamento conceitual desse contexto obscuro ao universo da Aurora Pós-Humana criado por Edgar Franco, transmutando essa dor profunda em potência artística de vida. A criação, pela arte e pela vida, como antídoto à destruição que se apresenta. É exibido um cenário de autoextinção da espécie humana, representada pelo pai morto de Belzebu e a hecatombe causada pela adoração à um Deus ilusório. Essa adoração não se dá pelo amor, mas pelo ódio, pela guerra, pela destruição, por toda a petulância podre e ressentida da humanidade, pelas negações, pelos extermínios, pela desconexão, pela morte e, sobretudo, pelo ódio disfarçado de amor. Um ódio camuflado e vendido como amor para instaurar, incessantemente, mais ódio e por fim aniquilar a si mesmo como espécie. Edgar enfia as unhas nas hipocrisias putrefatas desse totalitarismo neopentecostal e neofascista instituído pelas milícias militarizadas servis ao mercado que tomaram o poder, expondo o pus que jorra infeccionado e lançando-o na cara dos ditos “cidadãos de bem” que só promovem ódio.
Ouvi o EP, a princípio, sem conhecer a história em quadrinhos - que teve seu primeiro capítulo publicado na revista Atomic Magazine #1 - e já o achei visceral! Fantásticas e tenebrosas melodias que nos transportam, pela imaginação, a dimensões deslocadas do ordinário. Uma viagem ao extraordinário sombrio que nos compõe e que se completa na narrativa com o monólogo de Belzebu lamentando sobre a penúria da existência em meio ao nada que sobrou.
Imagens mentais que me surgiram foram de um cenário apocalíptico agroneoliberal, como aquelas que vemos em filmes distópicos ou em fazendas do agronegócio, devastadoras das florestas e do cerrado. Coloquei o EP pra rolar e de cara já imaginei essa atmosfera penosa, com o cramunhão condenando a má sorte do desencontro com o amor em essência de seu pai (humanidade) e a ruína do ser-humano corrompido por ilusões que o desconectaram de sua essência maternal natural.
A obra toca também em temas socioculturais importantes, como a intolerante cultura machista do paternalismo monoteísta impregnada há tempos na humanidade e que aniquila Gaia pela ilusão de não sermos parte dela. Essa mórbida “fricção de falos”, como coloca a faixa 2 do EP, instaura uma visão deslocada de nós mesmos, com inconscientes esvaziados de simpatia e repletos de ódio. Uma visão doentia de que somos alheios à natureza, à Terra, ao habitat, promovendo hostilidades e rancores destrutivos. Sem consciência de integração entre o interno e o externo. Sem identificação e afeto. Sem autoconhecimento e autocuidado.
Além disso, ainda há na sociedade uma indução do mercado pelo individualismo, que gera intolerâncias e destrói a empatia. Assim, não nos reconhecemos como natureza e, mais do que isso, nos vendem a ideia de que devemos destruí-la para ter felicidade associada à efemeridade do luxo e da riqueza material. Isso é o que chamo em meu universo ficcional de “MekHanTropia” instituída enquanto sistema, seduzindo o ser humano e cooptando sua essência desconectando-nos de tudo que nos compõe. A transformação da vida em objetos pelo mercado, do “Ser” em “Ter”, do bicho em máquina, do amor em ódio, da inclusão em exclusão, da colaboração em individualismo, do ser-humano em coisa, em destruição interior e exterior.
Chega-se um ponto que não nos reconheceremos mais como humanos, reflexivos, emotivos, carnais, colaborativos, comunicativos. Nos tornaremos mecanismos servis ao capital e essa desconexão com nossa essência nos provoca ódio. Ódio de nós mesmos e dos outros que são reflexos do que estamos nos tornando: máquinas de destruição, ferramentas, instrumentos padronizados, robotizados, sem subjetividade, sem pensamento crítico, sem pensamento próprio.
A violência oriunda da destruição de nós mesmos pelo egoísmo e pela ideia de não-pertencimento. A autoaniquilação inerente ao desequilíbrio que extingue a pluralidade da vida, instaurando a exclusão e a negação de nossa essência natural inclusiva, muitas vezes sem nem nos darmos conta disso. A desconexão camuflada de conectividade maquínica. As bolhas antissociais de positividade tóxica e agressões destiladas pelas redes. A ausência de respeito à vida e idolatria à destruição.
É preciso (re)integrar. É preciso resistir. É preciso refletir que o “outro” não (re)existe fora de nós, mas que, sobretudo, vem de dentro. O “outro” também somos nós, também está presente em nós. Nós somos o outro e o outro somos nós! Enquanto não integrarmos isso ao invés de negarmos, estaremos condenados a ser o morto dependurado na árvore representada pelo Ciberpajé na HQ.
Como diria o Pink Floyd: “Together we stand. Divided we fall”. A humanidade se esqueceu que é também constituída de planeta, de Gaia, de minérios, de água, de ar. Os elementos que nos movem também constituem as montanhas, as florestas, os oceanos, os rios, também estão em nossos ossos, carnes, sangue, células, átomos. Também nos faz pulsar o coração. A chuva também circula em nosso corpo composto e sedento por água e comida, que nos alimenta, integra e faz parte de nós e nós fazemos parte dela. O ar que entra e sai de nossos pulmões e nos dá vida, nos movimenta e nos integra ao todo, ao Prana, ao cosmos, à vida.
Indo além do que disse Hubert Reeves, de que “o homem é a mais insana das espécies, pois adora um Deus invisível e mata a Natureza visível sem perceber que a natureza que ele mata é esse Deus invisível que ele adora”, a obra coloca esse Deus invisível como um mandante para o assassinato de Gaia (a Natureza, a verdadeira Deusa). Um mandante criado esquizofrênicamente pelo próprio jagunço psicótico: a humanidade.
Estamos matando tudo em nome de um Deus ilusório tirano regido pelo mercado e criado por nós mesmos. Um monstro que reflete, como um espelho, nossa essência sombria negada social e individualmente. Um ser que criamos para nos desconectar do que somos: bicho, animal. Um ser que criamos para nos isentar do que somos ou nos tornamos: homicidas, genocidas, ecocidas e, consequentemente, suicidas. Um ser que destrói a mãe-Terra, a mãe-natureza, a mãe-Gaia, a verdadeira Deusa. A destruição do feminino é, assim, a destruição da nossa origem e, consequentemente, a destruição de tudo o que somos, em função de ilusões egóicas. A destruição do agora, do presente. A destruição de nós mesmos. A destruição de quem amamos.
A obra musical por si só já é bastante potente e já me provocou muitas reflexões. Mas não para por aí! Novas surpresas e vibrantes sensações ainda podem ser experienciadas transmidiáticamente nesse universo com a imersão na HQ transcendental homônima do Ciberpajé.
A forma como o artista navega pelas narrativas é inspiradora e provoca os sentidos e a imaginação a um mergulho naquele universo vigoroso, instigante, filosófico e, ao mesmo tempo, melancólico e aterrorizante pela crueza das representações de nossa decadência enquanto seres destruidores da vida. Um rompimento de fronteiras entre as mídias que culmina no rompimento de fronteiras culturais internas estabelecidas, ao longo da existência, por institucionalizações limitantes e alienantes do status quo. Um rompimento de ideias sobre quem somos e sobre quem pensamos ser. Uma possível reflexão do que poderíamos ser caso pudéssemos re-existir naquela diegése.
Ao transcender poeticamente esses limites ilusórios de formatação artística padronizadas pelo mercado, Edgar nos abre possibilidades de adentrar a vida em sua plenitude de maneira fluida e sem amarras materialistas, aniquilando obstáculos mercadológicos de padronização e exaltando a subjetividade como uma ode à liberdade de ser quem se é, direcionando assim, pela forma e pelo conteúdo de seu universo ficcional autoral poético, o encontro consigo mesmo de forma amorosa e plena.
O amor de fato, transcendente, maternal, intenso, cósmico, autodigerido e transmutado. O amor presente em cada organismo como essência para a vida, mesmo na experiência da morte, que segue em movimento natural constante de transformação. O elixir que potencializa a vida mesmo após a morte. A planta que surge da cova. A flor que nasce do asfalto trincado. O ovo que vem antes da galinha e gera outro ovo. O efeito antes da causa. A emoção em confluência com a razão. O amor de andar de mãos dadas com a morte pelo deserto do nada, pelo que existe agora, nesse instante, deslocado. O amor que sustenta, sintoniza e dá liga aos demônios internos inerentes a todos indivíduos. As Sombras integradas ao invés de negadas. O amor à Sombra transmutada pelos movimentos de seus traços, imbricados pelas redes neurais, que harmonizam-se com as sonoridades hibridizadas das músicas de forma impressionante.
A HQ é fabulosa! Uma experiência formidável e deslumbrante de navegação transdimensional. Uma relação fantástica entre os arquétipos do Diabo (Belzebu), do Enforcado (seu pai morto, dependurado em uma árvore) e da Morte (sua amiga). A dança astral incrustrada na essência da árvore da vida que integra a morte como parte do ciclo do infinito cósmico. A árvore genealógica do Diabo em contato com seu pai morto refletindo sobre o nada da vida que simplesmente é e incorpora tudo para ser e se transformar constantemente, em uma inabalável e poética metAMORfose. E o Sol, segue lá alucinado, nas páginas exposto em sua intensidade serena e brutal que possibilita novas narrativas nascerem e fluírem iluminadas nesse horizonte devastado.
*Fredé CF (a.k.a. Frederico Carvalho Felipe) é artista transmídia, criador do universo ficcional MekHanTropia, pesquisador, professor e doutorando no Programa de Pós-graduação em Arte e Cultura Visual da UFG, em Goiânia.
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