A semente criativa do EP Holofraktaforismos (OUÇA-O AQUI) foi uma experiência de ENOC (estado não ordinário de consciência) do Ciberpajé com o uso do enteógeno Psilocybe cubensis. Essa experiência visionária gerou uma série de desenhos inspirados nas visões obtidas durante o tempo em que ela durou, o Ciberpajé considera essas artes fruto de uma hipertecnologia ancestral, sendo o cogumelo cubensis um plug-in de neocortex. Tempos depois da experiência o Ciberpajé usou algumas dessas artes para criar uma série de HQforismos (gênero de quadrinhos poético-filosóficos que une um texto aforístico a uma imagem que dialogue com ele) que trouxessem em seu escopo as sensações de profunda conexão com o cosmos e de indignação com a desconexão com a natureza que reina no mundo contemporâneo.
Os 6 aforismos em preto e branco realizados foram inicialmente publicados no fanzine Uivo#5 e depois integraram o álbum em quadrinhos Enteogênicos (Editora Criativo). Quando surgiu a oportunidade de realizar a parceria com o musicista visionário e maestro euFraktus X (Eufrasio Prates), o Ciberpajé pensou na possibilidade de criar um desdobramento sonoro para os 6 HQforismos enteogénicos frutos daquela experiência atávica. Eufrasio aceitou o convite e o desafio para a criação de músicas holofractais baseadas na gravação das vozes do Ciberpajé recitando os aforismos.
Processo criativo musical do EP Holofraktaforismos
por euFraktus X (aka Eufrasio Prates)
Eis o texto dos aforismos escritos e recitados pelo Ciberpajé, base para a criação:
Aforismo I
Nas profundezas da floresta interior, resgatei a bela dor de ser animal.
Esse ancestral sabor usurpado pela cultura.
Aforismo II
Só a flor conhece o sonho mais selvagem da borboleta.
Aforismo III
A máscara só perpetua-se na ausência do amor e da intimidade.
Aforismo IV
Parecia um grito, mas era só o uivo selvagem do infinito.
Aforismo V
O ancestral peregrino em mim, redescobriu o sabor de ser um cósmico menino.
Aforismo VI
O cervo servia o servil de sonhos de silício e só.
A criação do EP Holofraktaforismos resultou de um convite do Ciberpajé (aka Edgar Franco) para musicar, com a técnica holofractal, seis de seus aforismos em meados de 2019 -- momento social crítico no Brasil e no mundo inteiro.
Minha resposta foi buscar nos 6 aforismos, gravados na voz do próprio Ciberpajé, um caminho estético capaz de exprimir uma contestação sonora, paradoxalmente organizada e caótica, engendrada crítica direta ao inequânime e injusto status quo contemporâneo.
Esses aforismos de cunho filosófico, estético e político (no sentido mais estrito dessas amplas e esvaziadas noções) -- falando por metáforas simbólicas cuja concisão e simplicidade ocultam uma profunda sabedoria xamânica da vida num multiverso transhumano -- oferecem grandes potencialidades de confronto ao estado mencionado. Esse foi o caminho escolhido no processo criativo musical, que reuniu técnicas de composição baseadas na imprevisibilidade da matemática fractal e dos algoritmos de Inteligência Artificial.
Processo criativo: ordem + caos
Métodos tradicionais aliados a softwares abertos de Inteligência Artificial (Google Tensor.Flow) e módulos da Suíte Holofractal Interativa de Transdução Sonora - HITS (holofractalmusic.wordpress.com) desenvolvidos na linguagem Max/MSP foram utilizados na parte composicional, para transformar, variar, inverter, estender e comprimir temporalmente os samples dos aforismos vocalizados pelo Ciberpajé, permitindo que todos os sons do políptico de 6 peças, sem exceção, tivessem a mesma origem, numa busca do mais alto grau de consistência, coerência e integração.
Pelo lado caótico-interativo do processo participaram os diálogos imprevisíveis com o algoritmo de A.I. e com os transdutores fractais do sistema H.I.T.S., que ampliaram sensivelmente o repertório estésico e o conectaram pós-humanamente a diversos outros projetos de experimentação sonora contemporânea, particularmente as abordagens não-acadêmicas baseadas na ampliação enteogênica da consciência e da intuição no momento criativo.
Se parece que a interferência do “compositor” foi bastante limitada, a considerar-se a opção por metodologias auto-restritivas (o que é veraz), também não faltaram desafios na tentativa de integração de uma narrativa (não-linear, evidentemente) que explorasse as referências filosófico-simbólicas e icônicas contidas em cada aforismo, humanas e pós-humanas. Não fora assim, o conjunto soaria demasiado estéril, mecânico, artificial, maquínico, redundante e auto-referenciado.
Ao contrário, para os ouvintes mais atentos não faltarão, paradoxalmente, diversidade na semelhança e similaridade na diferença, surpresa na previsibilidade e padrões nos fractais, estrias nos contínuos e continuidade na fragmentação. Que não se confunda essa responsabilização do ouvinte com qualquer tipo de exigência, pré-requisito ou demanda por alguma “erudição musical”: NÃO há pré-requisito para fruir essas pequenas peças, além de uma alma sensível e aberta ao esforço interpretativo. Pena que tais almas venham se tornando mais e mais escassas com a escalada fascista-patriarcal.
É assim, transcendendo o paradigma da tradição, que os holofraktaforismos se expressam politicamente: perante catástrofes recentes (de Brumadinho ao Brexit, de Bolsonazi a Thramp, do HIV ao Covid-19), Mãe Gaia parece estar a se vingar, reduzindo a pressão das mais de 7 bilhões de “bactérias consumidoras” de suas virtudes. Entretanto, uma análise espaçotemporalmente mais afastada e menos antropocêntrica, há de evidenciar tratar-se apenas de um processo de auto-regulação ou cura “autoimune”, a despeito dos seres mais ricos diuturnamente ocuparem primeiro os limitados botes salva-vidas. Se vamos ajudá-la sustentando-a ou em seu detrimento perpetuar a exploração destrutiva, é uma opção pessoal nem sempre consciente, ainda que sempre de impacto social e político.
Não surpreende, portanto, que essas obras possam soar como trilha sonora para um filme de horror e suspense, ainda que ofereçam por contraste momentos oníricos e reflexivos, perenemente acompanhados de percussões xamânicas. Por derivar de um movimento inspirado nessa mundividência complexa e multivérsica, o conjunto dialógico-fractal oferecido no EP sustenta-se na disponibilidade do ouvinte em investir suas habilidades semióticas para dar sentidos próprios à obra-processo, amplamente aberta à sua imaginação idiossincrática.
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